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quarta-feira, 29 de junho de 2016

APAGAR A LUZ ANTES DE DORMIR

Até à vista.
Foi assim a despedida com a convicção possível que a mentira comum entranhava.
É certo que marcamos um encontro nunca subordinado à disponibilidade que sacudíamos um do outro.
Escrevo no caderno as palavras que não quero esquecer e espero que a memória não fique invejosa e assuma com não desconfiança esta mania.
Libertar as janelas para que o dançarino da terna noite não seja mais a sombra que pesa no meu ombro e ter um tempo para a tornar real.
É segredo a verdade das coisas certas e erradas que desbotam flores que gentilmente congelam corações aborrecidos feitos da minha própria matéria.
Não temos de pagar a nostalgia ou brincar sozinhos no escuro naquele momento que pensamos poderá ser diferente.
Não esqueço nunca de apagar a luz antes de dormir.

,2016,06aNTÓNIODEmIRANDA


ALKA-SELTZER®.

Foi operado à estupidez.
A hérnia mental
não foi observada.
Continua a suspeita
de uma infindável dependência
da solução aquosa de Alka-Seltzer®.
Era visível uma nada promissora
retenção de líquidos anormalmente fora de época.



,2016,06aNTÓNIODEmIRANDA

ORAL SEM REDE

É preciso acreditar nos sentimentos sexualmente não transmitidos.
Fica-nos sempre bem não magoar outrem.
Só os apaixonados incautos põem o amor sobre as brasas.
Depois de o queimarem,
fogem com os pés colados no desgosto
e realizam fantasias num oral sem rede.

2016,06,aNTÓNIODEmIRANDA

IMBECIS

Só leram um livro :
O único que não tinha letras.
E a irreverência que conseguem mostrar,
está sempre visível na marca dos ténis
que emporcam o banco do autocarro.



,2016,06aNTÓNIODEmIRANDA

PALAVRAS DE GEL

Dizia coisas sem nexo,
mas nada o deixava mais perplexo
do que escrever naquela velha folha de papel,
onde dia sobre dia,
as palavras secavam.
Tentou ir à manicura
tratar deste mal que há tanto dura,
para cuidar deste assunto
com palavras de gel.


2016,06aNTÓNIODEmIRANDA

CARTA VERDE

Arrancou à pressa
o pó de arroz que escorria pela cara.
O semáforo teimoso tentava ludibriá-la.
Então com todo o gosto pisou o acelerador.
A amolgadela do carro da frente
não infringia nenhuma mentira.
Desta vez não errou a pontaria.
Há dias assim.
& há os outros quase perfeitos.
Mostrou a carta verde.
Accionou o seguro,
mas este já tinha morrido de velhice.
Telefonou para a companhia.
Ninguém respondia.
Pintou outro quadro ao agente
que tentava dizer-lhe que só estaria ali
para ouvir versões plausíveis.
O tráfego parado.
A fila a encher.
& os barcos parados no rio a apitar.
Tinha agora nos olhos tons esquisitos de pastel
que meticulosamente se dispuseram a soluçar.


2016,06,aNTÓNIODEmIRANDA


Ká Wámos Andendo

Não quero viver numa nuvem
de elogios espelhados
onde fedem palavras tão bonitas
que só servem para encher uma pia qualquer.
Esta digestão não me interessa.
Tão pouco ideias impressas
num stencil consignado
a um mestrado eloquentemente não sábio.
Não deito a cabeça em almofadas com ilusões medicadas.



,2016,06aNTÓNIODEmIRANDA

terça-feira, 28 de junho de 2016

COBAIA

É redondo o mundo,
embora com tantos cantos para limar,
e julgámos pendurá-lo ao pescoço
e assim distribuir gratuitamente a sua fatalidade.
Ando à sua procura, mas ninguém me avisou
da conspiração desta espera.
Não me posso fiar nas setas que me indicam uma direcção
para mais tarde me envergonhar.
Fugir desta mentira com passos atrevidos
e avisá-lo da minha indisponibilidade.
Correr! Correr! Correr!
Numa fé estragada
com que primo teclas do multibanco
com juros cobrados à cabeça para engordar o défice da infâmia.
Agora que sou a inerência do nada,
cobaia patrulhada num laboratório
habitado por nanotecnologia infectada.


,2016,06aNTÓNIODEmIRANDA

E ADORMECIA …

Limpava alguns momentos à procura de boas notícias na página da necrologia do jornal pousado na mesa do café e invariavelmente discutia a desilusão com o barbeiro.
Depois seguia até à paragem da camioneta que religiosamente tinha partido às sete da manhã. E esperava pelo carro do peixeiro, sempre com a esperança de um atraso que era raro acontecer.
Dava um pulo à horta para regar os tomates, e encostado ao muro habitual, contava vagarosamente as badaladas do sino da igreja, não que tivesse interesse, mas podia ser que desta vez elas não sincronizassem com o relógio que tinha comprado na loja do chinês.
Tinha saudades da cavaqueira da feira, mas agora está tudo tão fraco e longe, mais longe, do que o tempo que tem para gastar. Chegava a casa e ligava a televisão e telefonava para o número mágico que lhe prometia um prémio de não deitar fora. Quando fosse á cidade, haveria de comprar um telemóvel novo. O seu só funcionava para chamadas sem ofertas. Além disso queria fazer boa figura quando fosse à festa da aldeia. E continuava a cismar com a mania de pôr a mota em cima da mesa do snooker. Claro que gostava muito dela e aos poucos foi perdendo a saudade do ribombar das bolas. E o canito já estava velho para as apanhar.
Não ia para a cama sem visitar a adega, agora que não podia beber nem vinho nem aguardente que teimava em fazer. Talvez alguém apareça hoje e lhe dê dois dedos de conversa. Não será pedir muito.
E adormecia ...

,2016,06aNTÓNIODEmIRANDA

LISBOA, QUE TRISTE FADO TE ABALROA

Até quando permitiremos que nos mandem à merda com sorrisos patetas? O Pessoa do Chiado está farto, cansado & chateado. Merda para tanta fotografia de quem dele nem sequer leu um verso. Isto é uma porra, diz a velhota sem lugar no autocarro. Os pastéis de Belém já não são lugar para ninguém e o pasteleiro batoteiro sorri contente por enganar tanta gente. O de Santa Justa, sempre acima e abaixo, aguarda consulta e está com um feitio filha da puta. O Castelo de icterícia amarelada, acha isto uma chachada e já não tem sexo com a namorada.
O pastel de bacalhau com queijo enjoa o Tejo.
O tuk tuk é um preservativo com rodas e espia sem vergonha as travessas de Lisboa. E as Colinas estafadas brincam às escondidas no cemitério dos Prazeres. Imbecis com mapas na mão e mochilas anti-refugiados, perguntam em espanholês, e nipónicos atónicos vomitam sushis digitais com ténis de alta cilindrada, made numa Alemanha com incoerências nas emissões de CO2.E Tintins e Milous com pele vermelha tipo camarão do Lidl, com os testículos a abanar, bebem Stella Artois e fingem que são cães a mijar. E Asterixes e Obelixes “avec alors cependant” nas calçadas da Graça, sujam a sombra do Limoeiro, intrigam o cruzamento e o sinaleiro, e uma santa que dantes Luzia. Santiago Alquimista, muralha com triste vista e o fado amestrado no clube de Alfama. Lisboa, não digas mal de quem te ama, nem daquele que não te magoa, que chora por ti na Madragoa, e lava uma saudade sempre suja, estendida na noite, disfarçado nos abraços do cacilheiro que só a ti pode podem pertencer. Despeço-me de ti sem adeus num entardecer que arrefece e vai enfeitando esta morte anunciada com que te sonho.
Adeus meu amor. Está escrito numa velha bóia.

,2016,06aNTÓNIODEmIRANDA

AMOR ESCUSADO

Levaste o meu número
Mas quando telefonaste
Disseste o nome errado
Ousei pensar
Que o nosso beijo
Tivesse no desejo
As artes de amar
Guardo o segredo
Do nosso engano
Triste enredo
De amor escusado.

,2016,06aNTÓNIODEmIRANDA

A TESE

Licenciei-me numa universidade sem diplomas e tirei o mestrado, enquanto descarregava uma camioneta com telhas.
O parecer do júri ficou marcado nos meus braços.
Na tese, está escrita a maneira educada como os mandei à merda.

,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

PROMETO SER BREVE E O DESCUIDO NÃO DOLOSO

Não sou solitário e do lobo nem me falta a pele e não encontro poesia na biblioteca da junta da freguesia. Sento-me descalço na mesa e não consigo ideia melhor para o nojo deste silêncio compartilhado numa imbecilidade que não me atrai. Tento ser simpático, mas não é fácil perante tanta trapalhice. Não leves a mal não me lembrar do teu nome, mas outras chamadas me atentam e não é por maldade que pretendo riscar-te os olhos numa canalhice bem-intencionada.
Prometo ser breve e o descuido não doloso.
Todas as noites caiem, aprendi na tabuada.
E algumas entregam o sonho que queremos usar, bebendo-o em copos plasticamente de audácia. Porque não ser feliz, como o poeta diz, é dormir no teu olhar cangaceiro e deslizar as mãos no teu corpo para te entregar malmequeres que saem de mim como se fossem ternuras e acordar se calhar numa cascata florida.
Como se usa lá pelo natal.

,2016,06aNTÓNIODEmIRANDA

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Boris Vian - Le déserteur . Os bons, morrem sempre cedo demais.





Monsieur le président
Je vous fais une lettre
Que vous lirez peut-être
Si vous avez le temps
Je viens de recevoir
Mes papiers militaires
Pour partir à la guerre
Avant mercredi soir
Monsieur le président
Je ne veux pas la faire
Je ne suis pas sur terre
Pour tuer des pauvres gens
C'est pas pour vous fâcher
Il faut que je vous dise
Ma décision est prise
Je m'en vais déserter
Depuis que je suis né
J'ai vu mourir mon père
J'ai vu partir mes frères
Et pleurer mes enfants
Ma mère a tant souffert
Elle est dedans sa tombe
Et se moque des bombes
Et se moque des vers
Quand j'étais prisonnier
On m'a volé ma femme
On m'a volé mon âme
Et tout mon cher passé
Demain de bon matin
Je fermerai ma porte
Au nez des années mortes
J'irai sur les chemins
Je mendierai ma vie
Sur les routes de France
De Bretagne en Provence
Et je dirai aux gens:
« Refusez d'obéir
Refusez de la faire
N'allez pas à la guerre
Refusez de partir »
S'il faut donner son sang
Allez donner le vôtre
Vous êtes bon apôtre
Monsieur le président
Si vous me poursuivez
Prévenez vos gendarmes
Que je n'aurai pas d'armes
Et qu'ils pourront tirer



Boris Vian

terça-feira, 21 de junho de 2016

Um dos meus poemas preferidos, e um livro que não me canso de pegar. Liberté - Paul Eluard

Sur mes cahiers d’écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige
J’écris ton nom
Sur toutes les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J’écris ton nom
Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J’écris ton nom
Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l’écho de mon enfance
J’écris ton nom
Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées
J’écris ton nom
Sur tous mes chiffons d’azur
Sur l’étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J’écris ton nom
Sur les champs sur l’horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J’écris ton nom
Sur chaque bouffée d’aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J’écris ton nom
Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l’orage
Sur la pluie épaisse et fade
J’écris ton nom
Sur les formes scintillantes
Sur les cloches des couleurs
Sur la vérité physique
J’écris ton nom
Sur les sentiers éveillés
Sur les routes déployées
Sur les places qui débordent
J’écris ton nom
Sur la lampe qui s’allume
Sur la lampe qui s’éteint
Sur mes maisons réunies
J’écris ton nom
Sur le fruit coupé en deux
Du miroir et de ma chambre
Sur mon lit coquille vide
J’écris ton nom
Sur mon chien gourmand et tendre
Sur ses oreilles dressées
Sur sa patte maladroite
J’écris ton nom
Sur le tremplin de ma porte
Sur les objets familiers
Sur le flot du feu béni
J’écris ton nom
Sur toute chair accordée
Sur le front de mes amis
Sur chaque main qui se tend
J’écris ton nom
Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attentives
Bien au-dessus du silence
J’écris ton nom
Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J’écris ton nom
Sur l’absence sans désir
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J’écris ton nom
Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l’espoir sans souvenir
J’écris ton nom
Et par le pouvoir d’un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer
Liberté.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

When The Music's Over - The Doors

When The Music's Over
Yeah, c'mon
When the music's over, yeah
Turn out the lights
When the music's over
Turn out the lights
For the music is your special friend
Dance on fire as it intends
Music is your only friend
Until the end
Until the end
Cancel my subscription to the Resurrection
Send my credentials to the House of Detention
I got some friends inside
The face in the mirror won't stop
The girl in the window won't drop
A feast of friends
" Alive! " she cried
Waitin' for me
Outside!
Before I sink
Into the big sleep
I want to hear
The scream of the butterfly
Come back, baby
Back into my arm
We're gettin' tired of hangin' around
Waitin' around with our heads to the ground
I hear a very gentle sound
Very near, yet, very far
Very soft, yeah, very clear
Come today, come today
What have they done to the earth?
What have they done to our fair sister?
Ravaged and plundered and ripped her and bit her
Stuck her with knives in the side of the dawn
And tied her with fences and dragged her down
I hear a very gentle sound
With your ear down to the ground
We want the world and we want it
Now
Now?
Now!
Persian night, babe
See the light, babe
Save us!
Jesus!
Save us!
So when the music's over
When the music's over, yeah
When the music's over
Turn out the lights
Well the music is your special friend
Dance on fire as it intends
Music is your only friend
Until the end
Until the end

AS NOITES DO ÚLTIMO DIA


BaraBarraca Teatro Cinearte | Poesia às Quintas – com Miguel Martins

 É a nova tendência das noites da capital: ouvir e dizer poesia. De segunda a domingo, há sempre uma casa aberta à palavra. A Notícias Magazine andou por Lisboa e entrou em algumas.
São cada vez mais os que estão com ela – a ouvir quem lhe dá alma, conhecer quem lhe dá corpo, a (re)descobrir os versos que lhe dão vida. O convívio em torno da palavra escrita, feita palavra dita, cresce em Lisboa, com espaços dedicados a noites de leitura de poesia, um público fiel e uma porta aberta a revelar potenciais talentos.
Um autocarro, a travessia do Tejo de barco e mais uma caminhada. São estes os passos seguidos por Dulce Santos, da Amora ao largo que lhe carrega o apelido – e que alberga o bar do Teatro A Barraca. O aparente esticão noturno de transportes públicos, para assistir a uma sessão de poesia cronometrada entre os 20 e os 40 minutos, não a demove. «Não me custa. Se me custasse muito também não o faria», relativiza, fiel ao espaço e a quem o povoa. Estas são as noites que há mais tempo, de forma (quase) ininterrupta, persistem no roteiro lisboeta de leituras de poesia: está ao virar da esquina a 192ª sessão semanal, já a 23 de junho. Para Dulce, «calhou encontrar aquilo». Uma pesquisa online sobre poesia, enter, entre os resultados o blogue do poeta e editor Miguel Martins, enter, nos posts de oúnicoverdadeirodeusvivo.blogspot.pt a descoberta das Quintas de Poesia, que ele organiza. Bingo.
«Tem de ser tratado com muito respeito », atalha Miguel Martins quando se refere às idas e voltas de Dulce, que entretanto já viu em palco boa parte dos cerca de 145 convidados – poetas, artistas plásticos, escritores, músicos… –, de 15 países, a marcar presença nestas noites. Porque se «a estrela são os poemas», como ele diz, também aqui cabe «muitas vezes prosa. E pode ser só música. O que tenha cabimento no conceito de poesia».
A cantora e atriz Mariana Abrunheiro, ouvinte assídua, também se coloca sob os holofotes, a voz a enfrentar a sala escurecida. «Mesmo que tenha assistido a uma leitura de um poema que conheço, como é outro a ler, chega-me outro mundo», assume quando do lado do público.
Há dias, coube-lhe esse papel e ao bar d’A Barraca levou «alguns textos que leria aos amigos». Entre outros, ecoaram na sala Hélia Correia, José Gomes Ferreira, António José Forte, Alexandre O’Neill, para silêncio, sorriso, recolhimento da pequena plateia dessa noite, de que fazia parte outro habitué da casa, António de Miranda. Como o próprio sintetiza, «isto é um bocado vício». Tanto o de ir ali como o de criar. E stop. «Nunca leio. Costumo dizer que já me basta escrever.» Aprecia os bons leitores, «a arte é ritmo».

domingo, 19 de junho de 2016

EXORCISMO

Que poemas poderão agora ser escritos?
Não sei. Tu é que és o mestre!
Não chamemos estranhos para este serviço,
cuspiu o aparo da minha caneta.
Chegámos à ponte e nem sequer tomámos nota
Dos nomes dos barcos.
E pintámos as manhãs com círculos dourados
Que o sol nos ia entregando.
Poetas como devem ser,
disfarçados de saltimbancos,
acenavam alegremente,
exibindo palavras sem dicionário.
Era tão perto aquela ponte onde nunca estivemos.
O lugar onde ninguém se procura.
Onde querubins com asas tatuadas,
bailavam com bíblias na mão,
e um esquilo fingindo ler o Diário Popular,
mostrava-se atento à nossa inquietação.
Era tarde,
talvez com um cedo demasiado precoce,
para a entrega do último relatório,
onde a primeira página é sempre a mais mentirosa das notícias.
E no relvado daquele parque, cresciam plantas sabiamente regadas por quem só sabia cuidar das rosas.
Havia discursos para todos os gostos, profecias anunciando o fim da eternidade e freiras pornográficas a ler sinas à la carte. E patinadoras com corpos de cisnes infelizes, ofereciam tampaxes mentolados a reformados apressados na espera da chegada da morte. Dos ramos das árvores, pendiam poemas com lamentos desbotados por tanta injúria.
Na hora do almoço, o funcionário da repartição comia o milho dos pombos, e disfarçadamente metia no bolso folhas de alface, como se fossem notas de cinco euros.
Acabava o trabalho com o miserável hálito a alho, e regressava a uma casa que nunca iria acabar de pagar.
No caminho, mantinha o cuidado habitual de não pisar a merda, que o vizinho do lado tinha acabado de deitar pela janela.
Acendia as pipocas, ligava a pizza, cumprimentava o hambúrguer e imaginava ligar os 170 canais da televisão que há muito tempo tinha saído da sala.
A mulher tinha fugido com o melhor amigo, mas o pastor confortou-o dizendo que ela tinha escolhido o caminho do diabo.
Mandou-o em paz e recomendou as orações do costume,
Ela de joelhos no confessionário,
fez-lhe um exorcismo demorado…


,2016,06aNTÓNIODEmIRANDA

JÁ MUITOS SÓIS ME QUEIMARAM A PELE!

Um dia depois
não terá de ter o tempo para nele caminhar.
Tenho pedras que apressam este naufrágio
e pesam a memória com ideias cinzentas
que tento escrever,
como se fossem ficções
que me esqueço de lembrar.
Um dia depois,
é aquele que sabe o que preciso.
Nunca de uma manhã estranha
onde nada tenho para dar.
Um dia depois
dá-me horas para sonhos
que já não procuro
e salto a cor do muro
com o medo que já não conheço.
Um dia depois
é o olhar no espelho onde já não aconteço.
Um dia depois já não posso voltar.
Um dia depois…
Quem acertou o relógio?

,2016,06aNTÓNIODEmIRANDA

COUNTRY CLUB

No golfe, não basta o taco se não vemos o buraco 
onde com toda a veemência gostaríamos de acertar 
no gajo que anda a comer a nossa confrade.
Mas, não é só aí, diz-nos o padre na confissão domingueira.
Mau! Este gajo sabe muito.
Mais do que aquilo que devia.
Convém não exagerar.
Tenho que tentar o hole in one. 
Não é para o calar, 
mas as más-línguas chegam sempre longe demais.
Desta vez, só lhe enfiarei a luva no ânus sagrado.
Louvado seja o meu treinador.
Ajudou-me na perícia 
e a minha mulher, segundo dizem, gosta da sua carícia.
O caddy não se mostra muito interessado 
e isso deixa-me descansado.
No clube, onde não falho uma noite,
socializo com o whisky habitual.
Não sei porque olham para mim!
Só estou a fazer tempo para não chegar a casa 
a horas inconvenientes.
Somos alguns assim!
Cumprimentamo-nos olhando disfarçadamente para os rolex.


,2016,06aNTÓNIODEmIRANDA

quarta-feira, 15 de junho de 2016

ANJOS TOCANDO FLAUTA

Tinha na mão as violetas mais lindas.
Humedecido no olhar,
moldava-as com todo o cuidado.
Não fosse o mundo mudar-lhes a cor.
Sorridente,
sentado no banco que espreitava o mar,
pintava na cabeça de marinheiro, viagens.
Tinha no desejo uma ida destemida
e não era só sonho era uma vontade apetecida.
E olhava para mais do mais além
procurando a mania
que só a espuma enferrujava.
E ria. Ria muito alto,
nunca em sobressalto
para tudo o que avistava.
É bom ser assim.
Pensou consigo.
Gostar, caminhar no sonho
em que só ele cabia.
E gostava.
Gostava tanto daquela espuma,
dos salpicos da bruma
onde se alcança o imaginar.
Depois com o fim da tarde,
vieram os pássaros, velhos conhecidos
com nomes que ele gostava de inventar.
Era aquele o momento em que os anjos tocavam flauta.
E começou a andar na direcção que tinha aprendido.


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terça-feira, 14 de junho de 2016

BIOGRAFIA

Pouca gente me conhece.
& o mundo inteiro, também não!
Como ele costumava dizer,
gostava de ter sido eu
a escrever isso mesmo.
Não tenho muito para esconder
&
Muito menos poderei mostrar.
Trocámos de óculos
e naturalmente disse Ferlinghetti.
É pá! Não digas essa palavra!
Fumámos haikus.
Disse-lhe que tudo é possível
para além do razoável da nossa impossibilidade.
Embrulhámos certas sinfonias debaixo do guarda-chuva da nossa alegria.
Ali os caminhos opostos não nos fizeram mais distantes.
Rasguei do livro uma folha
para lhe devolver as palavras que me tinha emprestado.
Isto é para mim?
Também é para nós.
A chuva esperou pelo fim do nosso poema
e só depois começou a molhar.

,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA


ALLEGRO MA NON TROPPO

Ajeitou a coroa
e avulso cumprimentou os servos
com uma sinalética surfista.
O sufrágio devidamente gelado no frapé,
aguardava o fondue de oboés caramelizados
e um allegro ma non troppo narcotizado
por adágios psicossomáticos com cobertura de glacé.
O maestro especialmente convidado para a soirée,
pediu a casaca emprestada,
o que fazia dele um simpático pinguim.
Bodas de fígado e canja à la plancha,
completavam este menu servido
entre o andante e o moderato.
O chef pendurado no galho da árvore,
assistia honrado e feliz
a esta maravilha da ciência.
Discursos, só com a eloquência
de um qualquer cantabile.

,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

NENHUM PROFETA DISSE ISTO

Não me julguem insano.
São tão poucas as palavras,
e a vontade de as escrever ,
que me dão a traição do cansaço
com que já não me abraço,
agora que os dias fogem de mim
para darem longos passeios no parque.
Amo de ti, de mim,
serpente perfumada
paga a contragosto num cartão de crédito
que tanto seca o meu gostar.
Não quero ser difícil
nem pretendo a facilidade,
mas eu às vezes choro tanto sem me lembrar,
e lembro-me de muito sem ser capaz de chorar,
e isso só me mete nos caminhos,
como o Tomás costuma dizer,
da harmonia dos desequilíbrios.
Nem todos os dias têm de ser cruéis.
Nenhum profeta disse isto,
o que por si só, já é importante.

,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

TEMPORÁRIAMENTE FORA DE SERVIÇO

Ligo-me à corrente com volts seguramente confiáveis.
Acciono a potência para não afectar o curto-circuito e pergunto no talho do senhor Artur, se amanhã haverá bifanas.
Assim fico mais descansado e regresso ao fogão sem vontade de o limpar.
Passos muitos dias assim, escrevendo palavras no 28, para que ninguém leia alguma da minha raiva.
Aceno ao motorista que responde com um solo improvisado de campainha.
Vamos falando assim.
E assim vou ignorando simpatias patetas.



,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

CIRCO SEM FIM

 Pode o fim não ser redondo 
nem a sua vontade tão concreta
e o desejo não esconso
para uma vida secreta,
apenas uma maneira de agradecer a um Deus
que só nas estátuas tem os braços abertos



,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

CONJUGAÇÕES IGNORANTES

O mais fácil de entender
É aquilo que não sabemos dizer.
São os verbos difíceis
Com conjugações ignorantes.


,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

CORAÇÃO PICADO

Não me deixem assim!
Então e a explicação que gostaria de mentir
enquanto picava o teu coração
para uma vinha-d’alhos
que só iria sublimar a tua ausência?
Eu sei
que os nossos códigos não foram decifrados
nas manhãs que aborreciam as torradas.
Mas enquanto tu dormias,
mesmo com falta de fé,
eu injuriava o sumo de laranja
com promessas que ele nunca entendeu.


,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

FUTEBOL (7)

Via-se que tinha um bom toque de bola!
Mas… cruzava sempre atrasado.
Atento, o clube solicitou autorização especial
para que pudesse jogar com relógio.


,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

FUTEBOL (6)

Se és o suplente e o banco está húmido,
convém não usares fraldas absorventes.
É prudente não resfriar o aquecimento.

,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

HELP DESK

Vamos fazer um filho!
Agora é que é!
Pegou no telemóvel
E ligou para o Help Desk.
(Agora é assim que se diz).
Antigamente
Era diferente.


,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

MOSTO

Bebo dum trago o teu mosto
na adega de um velho agosto
com a luz de um luar humedecido.
Abro-te a casta
como se a uva
fosse unicamente um desejo de nós.
Podámos o amor na estação sincera.
Até então,
nada sabíamos dos danos colaterais.
Dissemos o amar-te-ei
sempre na forma do calendário
onde o sarro nunca muda.


,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

O AMOR IMPROVÁVEL

O
Teu
Amor
Tem
Que
Ser
Feito

Por
Mim


,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

PERCEPÇÃO EXTRA-SENSORIAL

Não tens que ter vergonha,
se cruzaste as pernas sem a malícia inocente
da - Sharon Stone.
Embora não seja um - Douglas qualquer,
reconheço que como boa praticante,
deixaste-te levar pelo instinto do Natal.
Não tens que ter vergonha,
da intenção não acerbada
com que os teus lábios tocam outras bocas.
Não tens que ter vergonha,
se o encontro das coxas não foi assaz premeditado,
porque só querias uma aproximação analógica.
Não tens que ter vergonha,
quando pensas nos homens que não copulaste,
embora prometesses a Percepção Extra-Sensorial.

,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

TECNOLOGIA COM PONTA

Quiseram crucifica-lo.
Coisa tipo
(como agora ouço dizer)
Injecção indolor.
Coisas da nova tecnologia.
Sentiu-se atraído
Para uma morte sem dor.
Coisa que desconhecia.

,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

DICIONÁRIO EMPRESTADO

Olhei-a discretamente.
Tentei esconder alguma curiosidade.
Mas...
Aquele nariz…
Tinha pendurado um macaco metalizado.
Chamam-lhe piercing.
(Li num dicionário emprestado).



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SENSABORIA POPULAR

  1. Há males que vêm para o bem! Que todos os males fossem assim.
  2. Com papas e tolos não se fazem bolos.
  3. A quem do teu foi mau banqueiro, não lhe mostres o mealheiro.
  4. Quem não tem dinheiro, está sempre teso.
  5. De nada serve a economia, quando a bolsa está vazia.
  6. Quem quer vai, quem não quer fica.
  7. Para o bom entendedor meia palavra é um erro.
  8. Com tempo tudo se muda.
  9. O homem prevenido fica mais pesado.
  10. Águas passadas não se podem beber.
  11. Boda molhada, bebida estragada.
  12. Mais vale perder um minuto na vida do que meia hora no dentista.
  13. Quem ama o feio, é porque tem mau gosto.
  14. Deus dá a farinha e o padeiro é que se fode.
  15. Vassoura nova dá muito trabalho.
  16. A obesidade não é a mãe de alguns vícios.
  17. Longe da vista, fica mais difícil de se ver.
  18. O saber não ocupa penico.
  19. Cautela e caldo de galinha nunca fez uma boa canja.
  20. No poupar é que está o engano.
  21. Quanto mais depressa mais rápido.
  22. O sol quando nasce é sinal que é dia.
  23. O barato não é caro.
  24. Amigos, amigos, negócios em Marte.
  25. Ajuda-te que Deus está ocupado.
  26. Juntam-se as comadres, zangam-se os compadres.
  27. Quem o alheio veste, é porque pediu emprestado.
  28. De tostão em tostão não se junta nada.
  29. Azar no amor, cabides na testa.
  30. Quem dá e torna a tirar é porque sabe negociar
  31. Quem come gato por lebre, também pode comer a ração.
  32. Um é pouco, dois é bom, três é bestial.
  33. Depois da tempestade a companhia de seguros está fechada.
  34. A insónia tranquila não é o melhor remédio contra a consciência.
  35. Cada um sabe de si e Deus de alguns.
  36. Quem nasceu para burro, tem uma vida triste.
  37. Quem nasceu para a forca, odeia gravatas.
  38. O pior surdo é o que não tem dinheiro para comprar o aparelho.
  39. Preso por ter cão, preso por não ter pago a licença.
  40. Guardado está o bocado. Convém não esquecer.
  41. Quem semeia feijão não colhe hortelã.
  42. Quem ri por último, poderá mostrar alguma falta de entendimento.
  43. Muito sabe quem pouco esquece.
  44. Rei morto, funeral à vista.
  45. Os opostos estão sempre longe.
  46. Quem tem telhado de vidro, dentro de casa pode ver o luar.
  47. Quem boa cama faz, é sinal de conhecimento.
  48. Perguntar não ofende, mas às vezes é uma grande chatice.
  49. Mais vale uma mama na mão, do que duas no sutiã.
  50. Quem dá aos pobres, não fica menos rico.
  51. Certos gostos não se discutem
  52. Hoje por mim, amanhã também.
  53. Se sabes o que eu sei, para quê ouvir?
  54. Diz-me com quem andas que eu também quero conhecer.
  55. Quem não faz o que pode, é para não ficar cansado.
  56. A mentira tem penas curtas.
  57. Quem corre por gosto, pode parar quando quiser.
  58. Não coloque o carro na frente dos bois, ele pode ficar danificado.
  59. Os melhores perfumes são muito caros.
  60. Trabalhar para aquecer, é aquilo que o patrão quer.
  61. Não há duas sem uma.
  62. Quem tem burro e anda a pé, é porque estima o animal.
  63. As boas contas também são difíceis de pagar.
  64. De boas intenções estão os idiotas cheios.
  65. Mais vale só do que ser sempre eu a pagar a conta.
  66. Deus o trazeu, Deus o leveu.
  67. Patrão na loja, dia santo lá fora.
  68. A fruta proibida nem sempre tem pesticida.
  69. Devagar com o andor que o santo não está com pressa.
 
,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

A TESE

Licenciei-me numa universidade sem diplomas e tirei o mestrado,
enquanto descarregava uma camioneta com telhas.
O parecer do júri ficou marcado nos meus braços.
Na tese, está escrita a maneira educada como os mandei à merda



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quinta-feira, 9 de junho de 2016

ANARQUIA PRECISA-SE!



Existo Logo trabalho Vendo-me Consumo E sou consumido. Sentado á secretária, Imagino & sou feliz Vendo os ponteiros do relógio Apressando um tempo Que em nada me dignifica.Ser figurante nunca fez de alguém importante. Ainda nos torram com tantas soldagens. Não precisa de ser tão pessimista! Pois é, senhor ministro, eu dantes não era pensionista. É sempre o mesmo filme que nos preparam estes mentecaptos realizadores. É-nos impingida a ideia constante que precisamos de ser orientados, governados e caímos sempre na teia que nos transforma em meros espoliados. A banca está atenta, como sempre pronta para chupar um sangue que já não é nosso. Depois virão as teorias do plasma negociado por vampiros, varizes cromáticas em forma de tatuagens para impressionar os músculos fabricados com suplementos encharcados com toxinas inadvertidamente amestradas num ginásio sempre com promoções prometendo um aumento facilmente observável do sexo daqueles que só distraidamente o praticam. As desculpas habituais aparecerão nas mãos de cavaleiros liofilizados com máscaras de anjos para cultivar a nossa servidão. Mas quem manda, quem tem de mandar para construir uma realidade que a cada um de nós diz respeito? Falam do útil como se fosse necessário e premendo a tecla do fútil nunca arbitrário. Dói-nos na pele. Emporca-nos a alma, tira-nos a calma e queima-nos assiduamente o sonho. Estatísticas holísticas inquéritos esponjados numa frequência tendencialmente alérgica à mínima inteligência necessária para a eles não responder. Óleos queimados que nos entopem a tentativa da diferença. Não me conformo, e sei agora que nunca poderá ser proibido o ousar. Mas o medo encanta uma gente que já não canta esta vida que já não é e nunca virá a ser. Ameaçam-nos com o caos porque eles são os bons e nós, os sempre roubados e enganados, os maus. Deixem-me em paz! Eu quero agora calcar o meu próprio caminho. Não sei que força é esta. Não a compreendo. E rejeito as suas garras que vos engenham a necessidade de serem mandados.
Deveremos saboreá-la e bebê-la com o sangue daqueles que ao abrigo da lei só nos têm enganado.
Chegou o momento de provarem o próprio veneno da sua hipocrisia. Ofereço-vos um nó windsor na gravata feita com as vossas tripas.
 
aNTÓNIODEmIRANDA

 

ANJOS TOCANDO FLAUTA

Tinha na mão as violetas mais lindas. Humedecido no olhar, moldava-as com todo o cuidado. Não fosse o mundo mudar-lhes a cor. Sorridente, sentado no banco que espreitava o mar, pintava na cabeça de marinheiro, viagens. Tinha no desejo uma ida destemida e não era só sonho era uma vontade apetecida. E olhava para mais do mais além procurando a mania que só a espuma enferrujava. E ria. Ria muito alto, nunca em sobressalto para tudo o que avistava. É bom ser assim. Pensou consigo. Gostar, caminhar no sonho em que só ele cabia. E gostava. Gostava tanto daquela espuma, dos salpicos da bruma onde se alcança o imaginar. Depois com o fim da tarde, vieram os pássaros, velhos conhecidos com nomes que ele gostava de inventar. Era aquele o momento em que os anjos tocavam flauta. E começou a andar na direcção que tinha aprendido.


,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

BLOW WIND BLOW. BLOW BACK MY FRIEND TO ME.

Gosto sempre de ti!
Que mais poderei dizer,
Quando só consigo escrever
Até Logo?
As coisas, aquelas que ainda são importantes,
Por vezes não me transmitem muita tranquilidade.
Claro que sei que os anos vão enchendo um vazio que começa a preocupar-me.
Talvez sejam coisas próprias da tristeza que não há muito tempo, julgava que não caber em mim.
Pendurar poemas e passar palavras a ferro com a devida delicadeza, não deixará nunca de ser uma solução temporária. Outros dias vão amanhecer com noites de escuros diferentes que nos irão soletrar palavras que julgávamos esquecidas. Mas mesmo sabendo alguma coisa da não felicidade, tentamos à nossa maneira encontrar presentes para embelezar o passe social. Tenho o chão a fugir, e escrevo com um pau de giz, na mais cruel tempestade, e estou preparado para continuar a fingir que tudo não passa de uma nuvem passageira.
Mergulho num mar que não sei se é azul, e também ignoro o tipo de algodão que poderá secar as últimas lágrimas.
Não gosto do acordar com poemas que me faltam.
Blow wind blow. Blow back my friend to me.

,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

TINHA NOVE ANOS E JÁ TOMAVA COMPRIMIDOS PARA DORMIR...

Na cabeça usava ovos com óculos na testa. A aba do chapéu escondia um nariz sempre a fungar. Sorria a chorar. Tinha nos olhos uma tristeza sempre presente e sonhava em forma adulta exactamente o contrário do que era suposto acontecer.
Tinha nove anos e já tomava comprimidos para dormir...
E adormecia ouvindo lengalengas que lhe cobriam os medos. Mas sentia sempre aquele frio que mesmo a luz do quarto não conseguia aquecer. Tinha na sua confusão um mundo tão diferente que fazia com que não soubesse brincar. Mimada até à medula da estupidez, encharcava birras e constipava-se quando bebia a água fervida. Mal tossia e logo uma pastilha a esperava. A febre sempre vigiada por uma soma de cuidados ridículos, exigia uma atenção redobrada. Sabia de cor as marcas dos comprimidos e todos a admiravam por esta habilidade. Era uma menina não criança. Crescia ao contrário da idade. Raio de mundo moldado numa tijela! Ali Babá e os seus amigos fugiram daquele curral. Mas tiveram azar: uma mochila com conteúdo alérgico a refugiados, não os levou ao Banco Alimentar Contra A Infâmia.
Tinha nove anos e já tomava comprimidos para dormir...
Possivelmente tornou-se fã incondicional dos Abba e espera que o Fernando adormeça para sonhar: Give me A Man After Midnight!
,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA


 

segunda-feira, 6 de junho de 2016

O PÓ DOS LIVROS

Uma lágrima sortuda
desviou-se do seu pranto
ainda o prognóstico não era reservado.
O desgosto era inequívoco
e a malvadez
maldosamente dissimulada.
Quieto,
o rio remava
um desconforto
sem fio nem navio.
Lá fora, queriam trocar abraços
mas ninguém se mostrou interessado.
Os mais fiéis,
de joelhos espremiam orações,
porque tinham aprendido
que era assim que as borbulhas
eram tratadas.
Não era fácil qualquer caminho
e as possibilidades aritméticas
tinham todas as fórmulas erradas.
Os factores já não eram comuns
e nos seus voos tontos
desenhavam logaritmos nas vidraças.
Cálculos irracionais
desconfiavam da constante diferencial.
Nuvens enevoadas
iluminavam o pó dos livros.
… Algumas palavras sentiram-se envergonhadas.

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quinta-feira, 2 de junho de 2016

CATALOGAÇÃO

Coração acrílico | Sem dono |
Técnica com colagens superficiais |
Óleo derramado numa tela imprevista |
Rasgado e assassinado pelo autor |
Não assinado | Não datado |
Private Sale.

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POEMA PARA A MINHA MULHER

Ensaiava no abrir das pregas da tua saia o voo do ícaro. Então deixava de pensar o medo que me assustava e voava voava... porque tinha o mais seguro dos paraquedas: o teu sorriso. Escorríamos o vinho nos nossos corpos e ambos sabíamos que o néctar que nos molha iria inundar os sonhos que iam acontecendo. Era a mais linda, aquela estrela da tarde que findava a sua luz, para que a lua pudesse assim apreciar a urgência da nossa paixão, aberta em lençóis com a fragância do nosso amor. No gira discos um LP rodava, mesmo sabendo que só ouvíamos a primeira canção.
Felizes os que amam assim.
Prazer em conhecer-te!


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CHÃ NO DESERTO

Enjeitava ficções como se a realidade fosse outra coisa. A talhe de foice alargou a saída de emergência e esperou em banho-maria que o melhor de si viesse à tona.
Ligaram-lhe do crematório a avisar que o forno já estava a aquecer. 
Serviço ocasional com toalhetes esmeradamente humedecidos num spa minimamente indecente. 
Melhor, só um chã no deserto.
Próxima paragem : a sessão da ½ noite.
Tinha uma vontade imediata de voltar a ver “o fim-de-semana alucinante”.
Nunca gostou do equilíbrio da sensatez. 
Aliás, considera isso como a verdadeira chatice.
 

,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

ANOMALIAS ENCEFÁLICAS

Você com tanta conversa, quer é comer-me.
Elucidei-a que quando bêbado, às vezes poderei transmitir essa sensação.
Prometi-lhe para mais tarde uma dissecação sobre o efeito dos vapores do álcool nas pessoas assiduamente não estúpidas.
E continuei a afastar o toque nada subtil com que os nossos sapatos se encontravam.
Não estava lá muito interessado em anomalias encefálicas.


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LISBOA, PÕE-TE EM GUARDA

Lisboa,
costumava amar-te.
Eras a minha princesa
com aquele desfilar de cheiros
que perfumavam a minha pele.
O que fizeram de ti,
agora meu amor chorado.
E a beleza do teu rio
mareada com cruzeiros
que de ti nada respeitam.
Lisboa,
não sejas estrangeira
não foi essa a maneira
que de ti me fez gostar.
Lisboa,
quero-te só para mim
beijar-te no abraço sem fim
apaixonar-me na tua sardinha
na noite de um louco António
sem aqueles estrangeiros
que nos fados que choras
sorriem e batem palmas
sem nada saberem da tua dignidade
e da dor que és obrigada a carregar.
Estás tão mudada
e as lágrimas que te pintam o rosto
não acolhem qualquer prazer.
Querem fazer de ti
a puta mais vulgar
e pisam-te as veias 
com máquinas fotográficas 
para mais tarde não recordar.
Lisboa,
agora eles gostam da tua tranquilidade e segurança, desprezando os destinos turísticos que emporcalharam, antes de agora seres a única hipótese.
E dirigem-se a ti, falando um espanholês estupidamente cretino.
Lisboa,
não sejas francesa, alemã, inglesa 
ou hipoteca qualquer.
Eu só quero percorrer-te
como o Tejo caminha para o mar.
Amo-te Lisboa.
Mas já não sei se ainda vamos a tempo.
Lisboa, minha amiga:
Põe-te em guarda!

 

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É POUCO O QUE FAÇO DA VIDA

Guardo no lenço uma memória endividada, uma constelação mentirosa e um tinteiro com palavras magoadas.
Tenho um chão sujo sons nojentos nos ouvidos, nas veias zumbidos e um amanhecer que em nada me enternece.
Tenho o relógio de ponto para picar, estúpidos para cumprimentar, mensagens mal-intencionadas para apagar.
Subo as escadas, pé com dor, estou farto das conversas de elevador e bebo a angústia num copo de plástico despejado da máquina automática, pela módica quantia de 50 cêntimos.
É pouco o que faço da vida.
Mesmo assim ela não o merece.



,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

CRÓNICAS DE VILA CHÃ - O Senhor Zé Sapateiro

Lá na aldeia, pouco depois do jantar, ia ao café. O senhor Zé e a sua adiantada surdez, cumprimentavam-me cordialmente. Num frente a frente ao balcão e com a tv no máximo nível de som, falávamos aos berros. Nada que o incomodasse. Com a sua cara, expressão mista de curiosidade e contemplação, perguntava : então e o que é? Um whisky, senhor Zé. E para o senhor? Agora vai uma cerveja. Enchia meio copo de imperial com o scotch. Não importava a marca, porque só havia uma. Então quanto é que lhe devo? Então é um euro e meio. E a sua cerveja? Já está incluída. Neste lamber de emoções, pago eu, depois paga ele, será lógico pensar que, apreciando eu esta convivência, a minha chegada a casa assumia por vezes alguma dificuldade.
Não gosta de tomate, alface e pimentos? Claro que sim. Vá lá apanhar. Mas nunca fiz uso da sua autorização sem ele na sua horta.
Está velhote o senhor Zé. Maldito reumático e umas tantas dores nas costas. E aqui tudo é tão longe! Já não vou ao café e as ervas vão tomando conta do seu quintal. Gosto da sua cara e sobretudo o modo como entendia as notícias da dica da semana, que nunca se esquecia de trazer quando ia a Tábua ou Oliveira do Hospital.
Passo os dias muito tranquilos em Vila Chã.
Sentado no alpendre, há mais de trinta anos que continuo a ouvir o piar daquele mocho.
Penso que já é tempo de um aperto de asas.
,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

PLENITUDE

Na plenitude costumo dizer aos meus amigos:
isto é só para os deuses!
Os outros comem noutra mesa
com um buffet que não nos interessa.
Também ouso falar
que somos tão importantes
que até deles não temos inveja.
Muitas vezes digo:
nunca caminhamos sozinhos
porque temos amigos.
Correcto e afirmativo.

,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA


PRIVILÉGIO

Isto é um processo criativo e é bom que se diga isto para que as pessoas não pensarem que tudo é arte. A procura da interpretação é uma tentativa inócua aprendida nos manuais. A intenção visual nunca poderá estar condicionada por um conhecimento mal intencionado. Se eu vejo uma vaca no campo, o que efectivamente eu quero ver, é uma vaca. É esta a minha foto policromática. O resto que também eu olho é uma sequência como outra qualquer. Felizmente tenho alguma experiência prática daquilo que estou a escrever. Trabalhei alguns anos numa leiloeira e aquando da exposição pública das obras que me deram a honra de nelas pegar, fui amiúde confrontado com comentários do género: 2 riscos? Isto também eu fazia. Diante de tanta presunção e bazófia, em lugar de os mandar à merda, respondia : claro que sim. Mas não perca tempo. Já está feito. Essencialmente o que me apaixonou nesses tempos de privilégio, as pessoas diziam trabalho, foi a possibilidade de ter nas mãos obras de artistas que até então só tinha visto penduradas nos mais diversos lugares. Mas dizer até amanhã ao AMADEO DE SOUZA-CARDOSO WILFREDO LAM VIEIRA DA SILVA ARPAD SZENES PAULA REGO MÁRIO BOTAS FRANCIS PICABIA ERRÓ CARLOS BOTELHO FERNANDO CALHAU RENÉ BERTHOLO ALFREDO GARCIA REVUELTA CÂNDIDO COSTA PINTO MARC CHAGALL EDUARDO LUIZ JOAQUIM RODRIGO PETER KLASEN FERNANDO LANHAS SERGE POLIAKOFF RUI CHAFES ANTONI TÀPIES TOM WESSELMANN VALÉRI ADAMI CARMEN CALVO PAT ANDREA JÚLIO POMAR CÉSAR BALDACCINI KAREL APPEL GERHARD RICHTER MEL RAMOS MAN RAY uma esponja YVES KLEIN HANS HARP JOAQUIN TORRES-GARCÍA SOL LeWITT JACKSON POLLOCK ALEXANDER CALDER ARMAN…
Percebem?
Por isso é que escrevo : que privilégio.


,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA

FIRMAS ANÓMALAS

FELIZARDO & FARTO, Lda.
Não suportavam a firma
FAREJA & SURRADOR, Sucessores, Lda.
Não era uma questão de inveja.
Até porque não actuavam no mesmo nicho de mercado.
Mas, porra!
Mais dois nomes tão estranhos...
deixavam-nos preocupados.
No confessionário queixavam-se ao padre.
E rezavam o ato de contrição para que isto não voltasse a acontecer.
Ideias tolas!
Esqueciam-se sempre de depositar qualquer coisa na caixa das esmolas.

,2016,06.aNTÓNIODEmIRANDA