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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

POEMA DO MIGUEL MARTINS / segunda-feira, 27 de Fevereiro de 2023

 

Morrer à janela.
De borco.
Deixar, debaixo da barriga, sobre a mesa
de permeio, um copo de álcool por estrear
e, no cinzeiro, um cigarro
que — perfidamente — teimará em abrir
um derradeiro buraco no pano da camisa
e outro na pele já insensível.
Morrer de olhos abertos
para a monótona paisagem circunscrita
por uma dúzia de traseiras de prédios,
onde moram pessoas cujos vícios e paixões,
decorrida uma década,
nunca tive interesse em tentar, sequer, imaginar.
 
E, depois (ah, depois!), voar sobre os telhados
descarregando finalmente a diarreia imaterial
de tudo quanto sou, não sou ou poderia ter sido,
com a mesma indiferença com que um balão perdido
vai para a esquerda ou para a direita
ou se esvazia,
cansado de animar o pasmo dos basbaques
voluntariamente, artificialmente acriançados.
E, de seguida, pfft, mais nada.
Ou o início de um batimento cardíaco
sem necessidade do respectivo órgão,
mas sintonizado com os ritmos, airosos e celerados,
que saem das bocas dos adolescentes dos bairros de lata
de Saturno assassinados à facada pelos gangues de Úrano
ao chegarem ao purgatório.
Que, como toda agente sabe, é um sítio cheio de futuro
e paciência, horribilis e amoenus,
como um saguão cheio de jornais pretéritos
ou um armazém frigorífico de carne
em que já crescem estalactites.
 
Penso: mas abrir a garrafa e encher o copo de álcool
é que foi um desperdício desnecessário,
derradeiro egoísmo de quem não deixa herdeiros
ou só daqueles que já não esperam nada,
que é como quem diz, daqueles que vingam
o tédio dos novos e o frémito dos velhos
com os seus sexos
de mel.

Miguel Martins _27/02/23

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