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terça-feira, 29 de agosto de 2023

A MALA

 


Letra a letra, memorizo nesta velha folha tão amarelecida como os passos que me cansam, sensações pintadas num cenário cúmplice com sugestões para um envelhecimento pretensamente feliz. Continuo a lembrar-me de coisas tão idas, como o simples esticar do dedo na esperança de uma boleia, que só acontecia para não desmoralizar a minha expectativa. Lembro-me de caminhadas feitas debaixo de candeeiros já a dormir, naquelas estradas onde os mochos entregavam sonhos ao domicílio. Piar amigo que nunca se enganava na árvore onde me encostava para escrever cartas a um céu desconhecido. Sozinho no meu medo habitual, na fome que fingia não ter, no sono que me apetecia, e na imaginação da minha cama, que tanta falta então me fazia. Há uma hora em que a noite pinta de frio, o mais bonito dos sonhos. E eu desenhava poemas para encher a velha mala de couro, fiel companheira de todas as minhas viagens. Trocávamos abraços de cumplicidade e nem sequer eram necessárias palavras para celebrar o nosso contentamento. Confortávamos a nossa presença com sorrisos de amizade autêntica. Liamos um para o outro, páginas do “ON THE ROAD”, poemas do Ginsberg, Ferllingethi, e cumprimentávamos as estrelas que nos contavam histórias escritas pelos anjos da desolação. Dormi o descanso do meu contentamento muitas e muitas vezes, nos comboios. Fazia a barba em frente do espelho do wc de uma qualquer carruagem, e nunca deixei de ser feliz. 
Nada de mim ficou por fazer. 
Nem sequer uma vírgula fora do lugar.
Vivo agora na plenitude daquilo que fiz por merecer.



2018Abr_aNTÓNIODEmIRANDA

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