Vejo a fome distribuída em longas filas. Máscaras com um choro envergonhado. Olhares perdidos na lama da desilusão. Não é minha esta paisagem, esta certeza que já nada abriga. Um saco de lágrimas. É o que tenho para oferecer ao caixote solidário.
A fome não quer mais a morte.
Caminho no chão das luvas, serpenteio nos desejos da aproximação desconfiada. Olho para os rostos, mas, não tenho memória para gostar. Passa por mim um cão. Não abana o rabo, simplesmente ignora-me, obedecendo à vontade do olfacto, farejando a ausência do vírus. Tornei-me num eu sem mim. Alojei-me no lugar que partiu, despido de qualquer lembrança. Sigo descalço para a fonte dos ocasos. Desejo uma coisa estranha.
Uma anomalia surda que obedeça à voz que já não ouço. A gravação não funciona. A fita iludiu a cassete. Ignoro o convite da porta. Estou confortavelmente fechado nos golpes das curiosidades que não me aliciam. Escondi os cadeados da ousadia. Imagino encenações porque não sei desenhar sonhos. Desconheço quem irá suicidar-me, depois de embriagar o desalento.
A fome não quer mais a morte.
Isto não está a correr bem.
Resta-me a sagrada violação da poesia nojenta, mas, o ar condicionado não funciona, e a vontade vai-se finando.
A fome não quer mais a morte.
Um gato pardacento encosta os bigodes no meu peito. Atiro a má disposição para as persianas. Dou voltas enroladas neste sofá, escrito com recordações pantanosas. Não sei o que faço, pendurado na árvore de natal. Só pretendo conhecer um cheiro parecido com a vida. Convivo bem com os arautos da tempestade. Abraço-me nos seus gritos. Agora já nada me custa. Por vezes, sou um lobo vestido com uivos desabitados, que não compreendem o apelo ao perdão. Não sei que conforto poderá oferecer o cemitério. Já escrevi o meu elogio fúnebre. E, ele não comporta mais palavras.
A fome não quer mais a morte.
Andei tanto aos tombos que nem me lembro das paredes que sangrei. Bebi nas noites longas, o amparo que tudo prometia. Beijei noivas hesitantes, conspurquei os futuros mais risonhos. Continuo a levantar-me num acordar alegre. Tiro a ramela dos olhos, pisco os olhos para o gajo do espelho, alvejamo-nos no ritual costumeiro. Despedimo-nos delicadamente. Sento-me na sanita para aliviar a vontade.
A fome não quer mais a morte.
Diz a canção que preciso de alguém para amar. A melhor oração para um defunto. Nunca serei um voluntário das intenções, mesmo boas, que não me respeitem. Na verdade estou farto da sorte aos trambolhões, do jackpot das hipóteses aputalhadas, dos conselhos respeitáveis que constantemente batem à porta. Viajo nos lugares que não conheço. Tenho saudades de ti, velho amigo.
A fome não quer mais a morte.
Onde teremos andado, agora que não encontro o nosso passar?
Quando voltaremos a beber o som daquele sax que escreve as palavras do único verdadeiro deus vivo? Paramos nesta página.
,2020mai_aNTÓNIODEmIRANDA
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