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domingo, 30 de novembro de 2025

TATAMI

 


Estou a atender no além.
Também faço deslocações a hotéis 
e motéis com marcação prévia.
Faço tudo que quiser.
Venha passar bons momentos comigo.
Um encontro memorável 
entre quatro paredes num 
apertamento discreto.
Alta carga eléctrica.
Por ser casado
prefiro manter a curiosidade 
e desejo não revelar o meu desgosto.
Venha relaxar debaixo do chão.
Recebo com todos os luxos
numa urna 
com um tatami da última geração.





,2018jan_aNTÓNIODEmIRANDA
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VEM MEU ANJO!

 

Vem meu anjo, 
desce esse caminhar do medo, 
pérola fendida nas mágoas da escuridão.
Tenho um poema pintado com palavras, 
um sonho para colorir, 
um grito absurdo, 
uma mão para amparar o vómito de todos os desencantos.
Iremos por fim, 
ouvir os acordes do realejo do amolador, 
que no seu canto de profeta, 
anuncia a boa nova do tempo que o magoou.
Chega com a pressa do momento dissonante, 
sê gentil só com aquilo que pretendes, 
se erraste, 
nada emendes, 
e tenta sorrir para quem pensa que existes.
Vem, meu anjo!
Procuraremos um lugar digno da tua mentira, 
um altar adequado à tua ausência, 
um abraço ocasional para a nossa brevidade.
Somos um contra o outro, 
o resto mais importante do nada 
que nos viu nascer.
Vem, meu anjo!
Escorrega devagar dessa nuvem 
que só te leu nomes errados.
Estou à tua espera!
Já é tempo
de nos conhecermos.


2018Mar_aNTÓNIODEmIRANDA
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sábado, 29 de novembro de 2025

AMOLADOR - Senhor Ferrer. O meu amigo.

Mas do que eu gosto mesmo é do realejo do galego amolador que ao meu passar pergunta na sua gaita:
então não tem nada para afiar?
Tenho vergonha de lhe dizer, que poderia começar pela minha vida.
Damos 2 dedos de conversa e sempre prometemos que está para breve a hipótese de mastigar a empanada de bacalhau e saborear o tal xarro de tinto.
Os melros do jardim fazem uma breve pausa na sua azáfama, para assim ouvirem melhor a sua música.
Sentado na velha companheira, penteia no esmeril uma tesoura, cortando assim saudades da sua Galiza.



,2017jan_aNTÓNIODEmIRANDA
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SABES QUEM ÉS!

 

Olha para ti todo avariado.
Que vida é esta que nos afasta de casa? Fuga pintada ao ritmo de bombas. Suaves tons de borboleta oferecem sorrisos doridos na boleia da enganosa esperança. A paz continua a ser grotescamente agredida pela bestialidade. Agora as lágrimas sabem o caminho, e mergulham a tristeza nos lábios de sangue. A fúria desce para esconder a traidora perspectiva. Sabes quem és! Tens esse fel bordado na almofada. A insónia molha o incómodo da memória. Não há sonhos para cobrir este desespero. Anjos vadios choram só para invejarem a impossibilidade. Ninguém sabe da tua fome. Sabes quem és! Claro que não consegues levantar-te. Queimaram a vontade comprada no alfarrabista. O desgosto aninhado, o futuro extraviado lá no poço da ousadia. Música de fundo aconchegada em suaves tons de luto. Olha para ti todo avariado.
Silêncio solitário. Iguarias imponentes oferecidas pela rainha dos loucos como se fosse ontem o dia que queria amanhã. Como ELE costumava mentir quando asseverava que ilimitada era a bondade do mundo. Ninguém sabe para o que está guardado. 
Acertou mesmo em cheio o cangalheiro, velho gozador. Fogo gelado à espreita na atrofia deste paraíso. Desenvencilhar pedaços de verdade Continuam difíceis os convites para quem só quer acreditar. Curiosidade dos urinóis.
Vai longe o poema que costumava vestir os nossos ideais. De mãos dadas no ocaso amolgado, não serei o único insanamente belo. Nuvens cristalinas já não acontecem.
Quando o sol veste o roupão negro à lua, parto à procura de um verbo que me entregue meiguices. 
A paixão seriamente danificada foi ter com o amante ao consultório. Noites doidamente cansadas. Onde te escondes, surpresa pré combinada? Vendo alguns dos meus milagres a 40 nós a desgraça. Envio por mensagem mentirosa um eloquente certificado garantindo o mísero estado dos meus órgãos veniais. (O último a cair nem imagina a sorte que teve).De costas voltadas durmo num soluço desesperadamente apressado. Ele perdeu a capacidade de esconder pesadelos banhados em fétidos tanques onde se arquivam heróis estupidamente desinfectados. Chorosos, os sinos já não dobram abraçados aos que não conseguem falar. Que deus (tal e qual sex symbol do aviário),não esqueça nunca as mentiras que lhe perdoei, assim como os pecados legendados com remendos de arrependimento.
Por mim pode perder-se no banho dos aloquetes desconfiados, olhar com simpatia o nojo, enaltecer a covardia, apunhalar os impulsos atrevidos, espalhar na avenida salpicos da desilusão constante.
Não quero pertencer-me nesta dor que assopra na coroa dos falhanços que não consigo evitar. 
Muito do que amei desapareceu neste império doloso.
Sabes quem és!

Fazem de ti ladrão mas não és tu o usurpador.



,2022Nov_aNTÓNIODEmIRANDA
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sexta-feira, 28 de novembro de 2025

MEMÓRIA DA GUERRA EM JULHO - Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010)

 

1
É preciso que aconteça numa manhã sem sol e sem
recurso para o cansaço que o corpo traz da noite.
É preciso também valorizar o medo. Dizer assim, talvez:
- a guerra continua, dormi a noite toda e a guerra continua.
Uma luz como a de Outubro surgirá em Julho.
Atingirá as formas como se as formas a desconhecessem,
como se até aí fossem rocha apenas sobre as areias que há
[no mar profundo
e não soubessem nada do seu próprio corpo
e a luz as dissolvesse numa excessiva sobreexposição.
Vem declarar, num instante, a anulação completa das
idades].
A progressão da luz e a regressão da forma.
A dissolvência, em suma.
Os contornos estão perdidos para sempre. Agora é a memória,
memória, a madrugada, a opacidade imaculada do silêncio.
Esta era a profecia. O retrato fiel do fim do mundo.
2
É já apenas só uma memória.
Falo da luz que irradiava dos cadáveres
e das águas fermentadas que os continham.
Havia um frasco, enorme.
Crescera desmedido para albergar compassos de uma guerra longe:
s ecos todos dos obuses todos
os glaciares do medo nas arenas do norte.
À volta uma manhã que era já quente, a luz rente de
Outubro, a iminência da dissolução.
E havia o frasco, um frasco enorme, prismático e aberto,
retendo o amarelo de uma água velha,
matéria a mais propícia à gestação dos limos e das algas.
À tona alguns cadáveres, o ventre exposto, inchado e branco,
alguns também retidos na verdura
e os olhos sobretudo, provocação soberba da miséria.
Quando isto aconteceu eu era muito novo
e sem recursos para iludir surpresas.
Mais tarde atravessei cidades mortas
Não as temi.
Morte ou memória? Como entendê-lo agora?
3
Os pequenos dragões puseram a gravata, ajustaram ao
corpo a couraça do orgulho, consultaram num instante a
cartilha da paz, e vieram para a rua comandar a guerra.
A ordem de batalha está completa: o cancro explodirá
Pela madrugada. Nem as franjas da noite estarão
bastante longe. A flor do eco, que abre nos peitos um
lugar para a sede, oscilará suspensa no silêncio,
assegurando o gangrenar da aurora.
Os pequenos dragões esbracejam na penumbra. Estendem
o braço para afagar o ferro e aferem, um a um, os
potentes instrumentos da confiança. Os pequenos dragões
estão sobretudo ansiosos. Exibem, varonis, a erecção da
voz e arremetem-na de encontro à multidão para
fecundar-lhe o embrião da raiva.
A aranha é instalada nos baldios da fé. Assenta o peso
sobre a carne incauta e crava as garras, para se afirmar,
na oferta abdominal das hostes seduzidas. O ferro
arranca vivas de prazer. Entre dois crânios grandes um
pequeno, de forma a que não haja qualquer falha e se
edifique um piso só de crânios. O aparelho
vive de equilíbrios.
Os pequenos dragões não podem mais. É tempo já de
acometer a noite. As condições propícias estão criadas: há
já um cio para umedecer o medo. Sejamos fêmeas para a
erecção da armada. Do som haverá luz e das brechas da
carne escorrerão manhãs.
O sangue, hoje, é dos outros.
4
Acordas ansioso por saber das grinaldas que o sangue
abriu na noite. Enfrentas a manhã nua e devassa
como a parede branca a que se rasga a forma
de um cartaz antigo. Caíram os tapumes da confiança
e eis presente, como nunca adversa, a geografia
cada vez mais tensa.
vês a língua de areias servida de outra luz.
A memória sumiu-se, cristalizou nos ecos.
A gestação do medo arruinou as horas.
Ensaias o andar antes sabido. Apenas expões a pele
sem que o contorno do teu velho corpo
revele indícios do que lhe vai por dentro. Reinventas no
mundo a implantação do vulto, lavado agora das razões
seguras. Estar vivo e acometer a claridade
implica a vocação de afeiçoar o corpo à praça imposta.
Há uma maneira apenas de enfrentar o frio.
É transportar, por dentro, o mesmo frio. Não fere, a
decisão, muito para além das decisões alheias.
5
Nada mudou para quem delega a glória.
Nada é tão grave que nos impeça os corpos.
Estamos aqui, sentados, sabendo que o conforto
é só cá dentro e a casa é cheia de alegria e festa
e a carne é fresca porque viva e alheia
à carne longe, retalhada e fria.
Somos de fato, em nosso apuro e com o nosso dote,
uma versão apenas indecisa
do nó que nos habita bem no centro.
Rapazes, raparigas,
que cada um empunhe a flor oculta
para inseri-la entre pernadas jovens.
A morte longe enquanto nos arder
à flor da boca
esta atenção pelas florações dos outros.

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Natal...

 


CAFÉ DOS POETAS #36 – Natal de Quê? Natal de Quem?
Natal de quê? De quem?
Este verso de Jorge de Sena (extraído do poema ‘Natal de 1971’) dá o mote para esta edição de Natal do Café dos Poetas.
E para tornar esta sessão ainda mais especial, convidámos cerca de duas dezenas de poetas que, ao longo destes últimos anos, têm sido amigos e cúmplices da PALAVRA, para nos enviarem um poema inspirado na quadra natalícia.
A colectânea de poemas que daqui resulta, será nesta noite lançada com pompa e circunstância. Mais do que celebrar o Natal, pretende também mostrar que estamos atentos ao que se passa no mundo num período que deveria ser de paz e harmonia entre todos nós.
Não percam uma noite cheia de surpresas!

Participam:
Afonso de Melo, Alice Duarte, António Carlos Cortez, António de Castro Caeiro, António de Miranda, António Manuel Ribeiro, Elisa Scarpa, Emília Gomes da Costa, Fernando Pinto do Amaral, Filipe Homem Fonseca, Jaime Rocha, José Anjos, José Baião Santos, José Fernando Delgado Mendonça, Lauren Mendunieta, M. Parissy, Maria Caetano Vilalobos, Maria de Abreu Morais, Miguel Martins, Nuno Miguel Guedes, Paula Cortes, Paulo Amado, Rodrigo Brandão, Rute Rocha Ferreira e Sir Scratch.

SONHO - TE

 


Sonho - te 

Dentro -  de -  mim 

Como

Se

A

V e r d a d e

Fosse

Esse

Momento


,2021Novembro_aNTÓNIODEmIRANDA
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segunda-feira, 24 de novembro de 2025

O PRESIDENTE ENGANOU-SE OUTRA VEZ NO COMPRIMIDO...

 


Tudo é (im) perfeito 
O mundo é (im) perfeito 
A crise é (im) perfeita
A Inflação não tem defeito
O desemprego urra de tanta (im) perfeição
A miséria é (im) perfeita 
A fome é (im) perfeita 
A guerra é (im) perfeita 
A injustiça é (im) perfeita 
A infâmia é (im) perfeita 
O Governo é (im) perfeito 
Até Deus (mesmo quando não está ocupado) é (im) perfeito 
A loucura é (im) perfeita
A pandemia é (im) perfeita 
A vacina é (im) perfeita 
A ganância é (im) perfeita 
A inveja é (im) perfeita 
A estupidez então nem é bom falar…
                                      é um fartar de (im) perfeição.
O desespero é (im) perfeito 
A solidão é (im) perfeita
A ignorância?
Bem, a ignorância é a coisa mais (im)    perfeita, 
depois do naufrágio da arca do Noé!
Eu próprio afirmo que ainda bem que não sou 
PERFEITO.


,2022Nov_aNTÓNIODEmIRANDA
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SEMENTES APODRECIDAS

 


Mais de mil amantes espalhados pelas ruas, 
rezam poemas sem ninguém para os entregar. 
Escondem na sarjeta, desgostos malvados, 
distribuídos na novena do entardecer amolecido. 
Varrem do céu, as luas da solidão, 
e, já nada esperam
 dos ruídos dos cinzentos subúrbios. 
Pedem-lhes para acreditarem no amanhecer 
que confortará
 a violência com que sempre se deitam. 
Fingem pintar o azul do nó que aperta a vida, 
e, sacodem na corda bamba, um choro rouco.
Mais de mil amantes, 
enterram sementes apodrecidas 
na terra da esperança mentirosa.
Destroçados, 
procuram um sangue não santificado, 
um único abraço, 
mesmo que finja a verdade.


,2019nov,10_aNTÓNIODEmIRANDA
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O ACONCHEGO DA NOITE MALDOSA


 Nada mais do que o desespero 
estava escrito naquela esperança. 
Inchou a taça das agonias com a vontade restante. 
Caminhou para o céu como se a estrada existisse.
Deitou-se na cama da poeira,
escutou o sino com os berros dos últimos pássaros.
Embrulhou-se no cartão 
para o aconchego da noite maldosa.
Não tenho lugar para ti,
disse mais uma vez,
o raiar do dia.

,2020Nov_aNTÓNIODEmIRANDA
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domingo, 23 de novembro de 2025

ORA PRO NOBIS_2019



Pegou no pão 

e multiplicou-o por 12 

migalhas.

                                        Os que tinham fome,

                                        não acharam piada.




,2019_ jan_aNTÓNIODEmIRANDA
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A FERRUGEM NUNCA DORME

Quando te tratarem sempre como um brinquedo Desconfia da intenção Ainda não chegou Dezembro A ferrugem nunca dorme Entretém-se a espalhar cruelmente a infâmia Que consome os nossos dias Enrouquece-nos os sentidos Não esquece um só pormenor Pinta-nos no corpo O som da dor E Por vezes Impede-nos de passar a ferro As pregas da saia da Marilyn Sabemos Sempre que é necessário Que para morrer um grande amor É preciso continuar a viver A ferrugem nunca dorme Compunge-nos com um hálito cínico Fingindo uma preocupação melíflua Exaurida na mentira abundante Com um amanhã Provavelmente tímido Sem nada para acontecer A ferrugem nunca dorme Transforma qualquer vontade Em torno deste tempo Num penhasco onde te possas inclinar.


2016,03_aNTÓNIODEmIRANDA
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FELIZ LUSITÂNIA _ Carlos Mota de Oliveira. Livraria Poesia Incompleta. Ontem com leitura do Changuito. Muito bom!

 






sábado, 22 de novembro de 2025

BEAT (Com um abraço para o Miguel Martins) - 56! Parabéns.

 



Ginsberg!
Na América nada mudou! Apesar dos avisos e das mil profecias que lhe entregou. Tudo continua ridículo no país que tanto te ofendeu. Corso continua à deriva tentando encontrar uma plantação digna da sua generosidade. Snyder deixou de ser um monge respeitado mesmo não tendo corrido bem a impressão de haikus na Reader's Digest. Diane di Prima e as suas longilíneas meias de vidro enforcam agora as memórias da beat com “mais ou menos poemas de amor”. Ferlinghetti tenta fazer o que pode emoldurando “os dias tranquilos”. E eu próprio para lá caminho. Allen, tenho todos os seus poemas guardados num saco cama sempre pronto a desafiar-me. Continuo a entrar nos supermercados sem que alguém reze pela minha beleza. Compro assim o que falta usando um cartão de crédito made in China. Pago as contas com euros sediados numa off shore que continua a fazer-me a vida ainda mais preta. Nas ruas vejo tantas pessoas deitadas ao lado dos contentores do lixo que comem depois dos ratos saciarem o apetite. Ginsberg, a América está como sempre perigosamente parecida com o outro mundo. 
E os russos ainda o tornam pior. Ginsberg, toda a gente escreve palavras numa articulada mania que dizem ser poesia. Aprenderam nos compêndios que lhes oferecem doutoramentos tirados nas máquinas das fotografias onde perdemos a identidade. Allen, morre-se assim sem dar por ela, embora ninguém vá ao seu funeral. Nunca estive na City Lights mas quando lá chegar serei imediatamente cumprimentado pelo Lawrence. O mundo continua a fugir do meu sonho e desatento como é, tenta polvilhar os seus poemas como se isso pagasse o respeito que nunca mostraram. O Carrol já não tem saudades do pai e ocupa agora os feriados entregando porta a porta embalagens de poesia sem consignação. Ginsberg, este universo é cruel apesar de tudo o que tenho oferecido. Tenho a uretra infectada com pus e uma fricção contagiosa que me controla a alma e o Robert Saggese tem “um pássaro na palavra” e está demasiado esquecido para a salvar. Allen, tomam conta de mim agora anjos que nunca pedi. E fazem piqueniques no Central Park com a bandeira do Goldman Sachs estendida e olham de soslaio todas as minhas expectativas. Ouço em semitom a música das sirenes que encharcam a minha ruína e Frank O´Hara continua preocupado com “a crise da indústria cinematográfica”.
Morre-se em qualquer lugar sem hora combinada sem culpa formada e sempre nos apanham desprevenidos e esta é “a proposta imoral” escrita por Robert Creeley. Allen, a vida é o cemitério do medo com orações take away gravadas em lápides onde se mente aqui jazz um homem bom. A melancolia cega a beleza dos meus olhos perdidos de volta no espelho, onde costumava ver-me enferrujado como os nós do arame farpado, pejado de retratos desconhecidos balançando uma “melodia para homens casados” gingada nas ancas da Lenore Kandel. E a noite chega atrapalhando o festim do fim do mundo, que acontece todos os dias em que não somos capazes de nascer. E Ron Loewinsohn continua a gritar “contra os silêncios que estão para vir”. Allen, sou observado por um drone não identificado e só tento esconder a denúncia nas folhas que guardo num mealheiro que roubei na igreja dos últimos dias dos santos sem piedade. Estou farto de ver gente feliz sem qualquer motivo e com orgulho menstruado pela miséria que espalham. Mas este passadiço não tem limite e eu acabo por adormecer sempre com a estrela errada na cabeça. Koller tenta acalmar-me oferecendo um tapete de “Ossos & Penas Pele e Asas no chão”. Allen, preciso de uma ligação pré-paga para o paraíso artificial. Pretendo pedir asilo temporário para a minha solidão. Mas ninguém se interessa pelo meu horário, embora ele não tenha os dias sempre tristes. Allen, estive numa concentração budista em que um monge flipado danificou o meu drama. Frequentei aulas de yoga com uma bailarina atenciosa que só bebia iogurtes fora de prazo. E até deus sabia o quanto eu detesto esta forma de orientação. E assim fui até ao fim do mundo ainda com um fardo mais pesado. Perco-me no significado das eloquências mal frequentadas que mais parecem elogios fúnebres acompanhados pela dança de carpideiras hawaianas, que me puseram no pescoço um colar de flores putrefactas e agora entretenho-me nas horas de ponta a espalhar o seu perfume nos urinóis mais utilizados pela opinião pública. Tenho uma postura sisuda e nada simpática para não me confundirem com o namorado da barbie. Volto ao lugar para ouvir o discurso do velho corvo de asas metalizadas e língua prenhe da única sabedoria. Fala-me do degelo da humanidade e dos medos que tanto a ferem. Então digo-lhe que estou pronto. Eu sei que ele me levará aos demónios. Allen, não quero este caminho que a solidão comodamente instalada no sofá pensa cativar-me. 
Actualizo-me num sequestro sereno na chegada do momento de abraçar manuscritos pacientes que decoram as sombras do silêncio numa modernidade de estátuas com olhares distantes. Este universo é cruel apesar de tudo o que tenho tentado. Estou cansado de esperar nas escadas do paraíso com a chave errada. 
Tenho uma coleira certificada, anti tudo mas que não funciona. Tomam conta de mim agora poetas tão tesos como eu. E afiam no nobre golpe da navalha a memória enlouquecida. Aparo pétalas demasiado parecidas com gotas de sangue. Já não penso no que teria ter sido nem nos milagres que tentavam vender-me na feira das onze aos domingos. 
Aplainei virtudes diferentes nos anos que só a mim pertenciam e alinhei nas propostas condizentes com a minha pretensão. Colhi nesta estrada frutos nunca imaginados por quem de mim só pensou o que não me conhecia. Continuo um curioso sem complexos o que me torna um aprendiz interessado.
Ginsberg!
Também tenho um grito!
E um frio tremor nas mãos que me tempera angústias desesperadamente sós.
Ginsberg!
O mundo nunca vai encontrar o caminho.





2016,09aNTÓNIODEmIRANDA
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O SUAVE DESPIR DO DESEJO

 




Então dizias que o mundo não te apetecia 
nessa pele escrita com orgasmos nunca
acontecidos.
(Tem destes percalços a ivaginação).
E eu, atento, 
a esse húmido tormento,  
acariciava o suave despir do desejo.
As coisas são como são, 
rezam os moucos gemidos.
E eu sei que os abraços que faltaram 
são agora lembrados nos epitáfios 
da mais reles hipocrisia.
Os abençoados, 
nesta ermida de visões menstruadas, 
aguardam ainda qualquer convite 
para uma dança de ventre ornamentada com sofisticados bailados de camisas-de-vénus precocemente despejadas.
E descem a Alameda da glória, 
açoitando perfumes retardados 
perante o embaraço
 dos passageiros mais ousados.
Deus é grande!
Dizem os devotos.
Tal grandeza só me entristece...



2025No_aNTÓNIODEmiRANDA
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SOPROS DA IDADE DO SILÊNCIO

 



Bem-Me-Queres despachados 
Numa sessão privada 
Sem palmas para incomodar.

            Alguém,
         Sempre mais do que aquilo 
            Que não conseguimos ser, 
            Recita no dó mais magoado 
            O acorde da nossa 
Indelicadeza.

Corre o tempo 
No sentido covardemente ilustrado
Ao encontro da interminável 
Tragédia 
Da humanidade.






2025Out_aNTÓNIODEmiRANDA
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sexta-feira, 21 de novembro de 2025

AQUI NÃO HÁ ESTRANHOS

Está tudo agora tão preso neste jardim.
As palavras brincam de pedra em pedra 
e regam flores
num jogo de cabra-cega.
Acedem-se velas
queimando cartas 
para incendiar vudus.
Alegres coros
celebram jubileus fora de horas.
Aleluias passeiam de bicicleta
carregando pintassilgos para chilrear
nos caminhos das manhãs perdidas.
Lamentos com a corda na garganta
oferecem gargalhadas embrulhadas
em pacotes de amendoins.
Jura-se um choro eterno
que será ardido
no crepúsculo cristalino
dos dias com encomenda especial.
Aqui não há estranhos.
Simplesmente ninguém
quer ser conhecido.




2016,11aNTÓNIODEmIRANDA
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terça-feira, 18 de novembro de 2025

SE SEQUER ME RECORDASSE

 

Poderia explicar, 
se sequer me recordasse, 
de uma só hora que de mim fugiu.
Não percebo o tardar deste acontecer, 
neste jeito de morrer, pejado de fantasmas, 
apedrejados no desespero da avenida 
das estátuas apodrecidas. 
Alguém que habite a solidão  
continuará a não incomodar 
a nojenta consciência da realidade. 
Veias com o sangue de todas as cores 
tentam adormecer histórias com um conveniente final feliz. 
Esta é a noite do entrudo de plástico,  
das máscaras do perturbador sentido, 
sem nada para disfarçar. 
Será esta a vez da próxima investida 
da despedida anunciada?
Leva-me daqui logo que te lembres,
embrulha-me no teu olhar, 
não me escondas num canteiro sombrio 
porque eu perco - me com assídua facilidade. 
Cuida de mim quando puderes, 
mesmo que o desespero que cobre a minha pele, 
nunca tenha tocado a tua indiferença.
 


,2021Novembro_aNTÓNIODEmIRANDA
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ENTRETANTO…

 

Pedi a deus o céu
para a minha morte não o incomodar
voei o mais alto que quis 
como pássaro desenhado
na nuvem por mim pintada
no meu próprio tempo
de saudade ausente
de ficção inventada
de sorrisos fintados
de caminhos solitários
de moradas artificiais.
Invejei a morte
mas nunca reneguei o seu convite.
Algum dia encontrarei
o que está dentro de mim…
O paraíso só acontece uma vez.
Entretanto…
Alguém me observa
Exibindo alegremente
A embalagem dos comprimidos da minha mãe.

,maio2010aNTÓNIODEmIRANDA


IMC (Índice de Massa Corporal)

 


Quando ela me parte os braços 

eu fico com uns inchaços 

feridos até mais não. 

Já não posso tocá-la com abraços, 

beijá-la com inTEnSÃO.




2016,11aNTÓNIODEmIRANDA
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FREE LIKE A SHOT FROM MY GUN

 


D e r a m -  l h e  

u m  

t i r o  n o  r e t r a t o 


M o r r e u   

s e m   

d a r   p o r   i s s o


,2015ª_NTÓNIODEmIRANDA
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segunda-feira, 17 de novembro de 2025

EM PICADILLY CIRCUS, PODIA TER SIDO ASSIM

 


Agora lê poesia no pátio das mortes
onde sorrisos de pássaros
acendem cachimbos com misturas 
curiosas.
E goteja palavras
só entendidas por 
poetas divinos.
Escorrem ácidos
de taças lacrimosas
que tornam brandos todos os 
queixumes.
E os versos felizes
andam ao colo dos anjos
abraçando assim 
a humanidade possível.

Poderia ter acontecido 
                em Picadilly Circus.




,2016,07aNTÓNIODEmIRANDA
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domingo, 16 de novembro de 2025

ANNEES 60 - THE BEACH BOY - PROCOL HARUM - APHRODITE'S CHILO - THE MAMAS...

Them - Gloria (Live in France)

The Box Tops - The Letter (Upbeat 1967)

SEC`ADEGAS _O HÁLITO SALGADO

 



Está frio no meio do meu sonho.
A pele estica-se fora da dor,
fugindo do sangue atropelado 
pela lama da vida.
Tenho na mão
o hálito salgado 
dos tempos morridos
desta espera constante.
Não posso pedir ajuda
a esta importância que me julga,
neste cambalear
com que embalo o meu vazio,
pensando iluminar as agruras
onde tanto me desanimei.
Estendo sorrisos
como se a eles alguém acenasse
e assim me envolvo em bolhas de cotão.
Vou passando em todas as ruas
como a areia do deserto
que sobrevive à falta da mais pequena ternura.
Chego sempre cansado
demasiado cansado
carregando o peso da minha ausência.
Descalço o olhar
escondo o desejo
alisando a memória
nas ilustrações esbranquiçadas
da minha ilusão.
Infinito é o bocejar do meu passado
feito com o polimento das pedras
que me atiraram.
Continuo apartado.
...depois de todo este tempo.




,2017jan_aNTÓNIODEmIRANDA
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quarta-feira, 12 de novembro de 2025

AQUI, NÃO É LUGAR NENHUM

 
- Chega a noite cansada do dia chorado e aquele que dorme na pensão das estrelas aconchega o resto no saco das angústias. Tem na cabeça um livro ressequido pelo tempo que ousou estar. Estende o olhar na passadeira dos anos aguarda a canção que o embala e pousa as mãos na forma da solidão habitual como se aquilo que ainda o engana fosse a mais santificada das indiferenças. A realidade não a sua continua a sangrar a vontade que lhe roubaram. Os verbos foram passando ignóbeis trapaceiros ofendendo a sua dignidade em todos os momentos possíveis. Tem calma dizem-lhe todos os anúncios ejaculados no céu que ele há tantas lágrimas se recusa a mirar. Devagar como sempre cerra os pulsos aperta a alma e chora como se fosse ontem os mesmos sonhos.
- Espera o conforto das palavras que não o atraiçoaram e logo que acorde continuará como de costume a espalhar os seus poemas para os pássaros que prezam a sua companhia.
- Molha a cara no rio bolorento alisa a pele no sabão retardado afinal tão fora de prazo como a sua existência. Nada há para roubar na caixa das esmolas. 
Sorrindo para si próprio esmaga ainda mais o cinto. Olha-o bem nos olhos: não conseguiste fazer de mim mais um pedinte.
- Cansado de ser abusado murcha os perfumes da pena mal-cheirosa. Volta ao rio que lhe oferece o espelho que aquece a despedida. Passa o tempo não sabe que sorriso esperar chega a hora de todos os momentos que tanto custam a inventar.
- Os ritmos da solidão depositam-lhe nos ossos os venenos que o acalmam. Navega no seu olhar fragâncias low-cost oferecidas por um call-center que só o quer maquilhar. 
- Aquece o nojo numa lamparina curiosa retira a espoleta tenta o mais longo arremesso retrai o medo chora mais um segredo no maior dos optimismos. Voa baixo para não ferir o planar dos sonhos magoados pelo desgosto encosta-se à berma abranda a estrada rasteja a ficção naquele mar de paintball alegra as tiras e estruge os embustes no molho que o vai empobrecendo.
- Aqui, não é lugar nenhum.


2018Ago_aNTÓNIODEmIRANDA
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ENTÃO QUERES SER UM ESCRITOR? CHARLES BUKOWSKI

 




então queres ser um escritor?

se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.
se tens que estar horas sentado
a olhar para um ecrã de computador
ou curvado sobre a tua
máquina de escrever
procurando as palavras,
não o faças.
se o fazes por dinheiro ou
fama,
não o faças.
se o fazes para teres
mulheres na tua cama,
não o faças.
se tens que te sentar e
reescrever uma e outra vez,
não o faças.
se dá trabalho só pensar em fazê-lo,
não o faças.
se tentas escrever como outros escreveram,
não o faças.
se tens que esperar para que saia de ti
a gritar,
então espera pacientemente.
se nunca sair de ti a gritar,
faz outra coisa.
se tens que o ler primeiro à tua mulher
ou namorada ou namorado
ou pais ou a quem quer que seja,
não estás preparado.
não sejas como muitos escritores,
não sejas como milhares de
pessoas que se consideram escritores,
não sejas chato nem aborrecido e
pedante, não te consumas com auto-
— devoção.
as bibliotecas de todo o mundo têm
bocejado até
adormecer
com os da tua espécie.
não sejas mais um.
não o faças.
a menos que saia da
tua alma como um míssil,
a menos que o estar parado
te leve à loucura ou
ao suicídio ou homicídio,
não o faças.
a menos que o sol dentro de ti
te queime as tripas,
não o faças.
quando chegar mesmo a altura,
e se foste escolhido,
vai acontecer
por si só e continuará a acontecer
até que tu morras ou morra em ti.
não há outra alternativa.
e nunca houve.


(Tradução: Manuel A. Domingos)




A MINHA SOLIDÃO NEM SEMPRE É TRISTE

 



Estou a chegar 

 (Ela o diz
 Em voos de veludo)

Estarei atento
À 
Fragrância
Do seu
Convite 


,2022Nov_aNTÓNIODEmIRANDA
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terça-feira, 11 de novembro de 2025

A VIDA POR VEZES É UMA ÁRDUA TAREFA

 

Certidão narrativa da des-concertação social.
Anomalias trôpegas com certificação acidental 
mordem-me os calcanhares 
e Aquiles fica desesperado.
A estrada sem gps é aquela que mais nos ensina.
Assisto deitado no trapézio à ondulação 
das inércias que me ferem. 
Seria mais fácil elucidar a posição nada serena 
dos pontos cardeais, mas não estou para aí virado. 
Não me cativam as questões religiosas. 
Nunca tive ninguém à espera 
nas insinuações mais atrevidas 
e confesso que daí tirei todas as vantagens. 
A vida por vezes é uma árdua tarefa. 
Erguer taças vazias ou cheias não é fácil. 
Mais duro é pensar 
que às vezes nem isso conseguimos.
Cantar a mesma canção sempre de maneira igual 
não passa de uma simpatia repetida. 
O que a torna numa grande maçada.


2016,09aNTÓNIODEmIRANDA
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segunda-feira, 10 de novembro de 2025

SUSHI COM O MEU AMOR

 



Era contigo que dormia 
enquanto  noutras camas  pensava 

O abraço bolorento que pretendias entregar 
ficava sempre próximo do engano que te oferecia 

O teu sorriso chegava até à testa 
e servia para disfarçar certas proeminências 
mal localizadas 

Acordava sempre com a pressa habitual 
para se libertar do teu hálito amorfo

No spa 
a aromaterapia
já nada prometia



,2020Out_aNTÓNIODEmIRANDA
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sábado, 8 de novembro de 2025

QUANDO O SANTO CAIU DO ANDOR

 


Quando o santo caiu do andor, toda a gente lá na procissão, ficou preocupada. Bêbado o prior, aproveitou este ornamento e falou da necessidade das obras do telhado da sua casa. E se a verba bastasse, iria tratar dos melhoramentos da capela. Até porque o tempo já não é o que era. Já benzeu o presidente da junta de freguesia.
O motor do carro não funciona e o vinho que lhe ofereceram fazia-lhe azia. E as velinhas do sacrário, feitas por um conhecido falsário, a deus não satisfaziam. O crucifixo de ouro com que o prendaram, estava a enferrujar e ele de tanta vergonha, já não o podia usar na lapela. Má sorte a sua. Nem tinha coragem de sair à rua. Mas nada para si ele pedia. Só esperava compreensão. Gaguejando, anunciava um pequeno aumento no preço da confissão, claro está, sem má intenção.
Cada um dá o que pode. E não será por isso que ficará mais pobre. Aquele, o santo que caiu do andor, depois de lhe passar o ardor, falou com fervor à multidão, elogiando o pastor.… & conforme combinado, foi o primeiro a beijar-lhe a mão.
Mais tarde, os dois no quarto do Ibis lá para os lados de Guimarães, enrabaram-se como cães.
Aleluia! Vaselina sem areia oferecida pela comissão dos acólitos do broche sem pecado.
Cada um faz o que pode!
Mas é sempre o mesmo que se fode!

2017,jun_aNTÓNIODEmIRANDA
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sexta-feira, 7 de novembro de 2025

LISBOA BLUES (15) ONDULANTE





Ondulante No néon perturbante
Da avenida de Roma
E o olhar matreiro
Não sei se de puta Ou paneleiro
Como um anúncio digital
Que constantemente
Convidava: Não prove ...
Coma.
E o cigarro Colado aos lábios
Ejaculando o fumo perturbado
Que amestravas com gestos sábios
E as ancas a abanar O peito a espreitar
Mais um espelho para mirar
A carteira a pedir & como sempre
Há sempre um parvo.
Ondulante no néon perturbante
No passeio d`avenida
Já sei de cor O preço desse amor
Contigo já cantei Essa cantiga.
Nem mesmo O teu olhar com malícia
Com promessa de carícia faz-me hesitar
Hoje não, estou com pressa
Amanhã não, que não posso
Talvez nunca hei - de voltar.
Ondulante
Perturbante
Num néon hesitante
Talvez te visse num instante
Numa qualquer avenida ...

         
86ago._aNTÓNIODEmIRANDA
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Geraldo Vandré - Pra não dizer que não falei das Flores

WOODY ALLEN " O QUE SE PASSA COM BAUM" .No blog do Miguel Martins




quarta-feira, 5 de novembro de 2025

POESIA-ME

 


Não quero nada de profundo.
Já me basta o presente sem fundo 
e um qualquer acaso sem caso que me preencha.
Talvez um anjo vagabundo me calque os ouvidos
sem as palavras certas 
escritas na cortina
em forma de segredo. 
Triste enredo voando na incerteza 
como pássaro triste escurecendo o céu, 
pintando a noite recolhida no ninho 
que já não lhe pertence.
Não quero nada de profundo.
Nem sequer o poema onde tu já não cabes.
Talvez um momento  sem efeitos secundários
nem princípios activos  para a manutenção 
do nível razoavelmente normal de colesterol.
Não quero nada de profundo.
Como se rezar antes de deitar
tingisse uma urgência
que também já não cabe em mim.
Poesia-me em lume brando
com o gume da chama violenta.
Poesia-me como se eu fosse o único poeta
que usa versos atados  num punhal
onde ardem soluços em morte lenta.
Poesia-me
como se a poesia fosse sempre verdade.


,2016,03aNTÓNIODEmIRANDA
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ATÉ QUE ALMA LAVE O CORPO ESCONDEREI ESTE SENTIMENTO PARA A MANHÃ FELIZ

 


É possível que possas confiar em mim, 
sobretudo quando tenho as mãos 
no meio das tuas coxas. 
Não duvides desta intenção,
 porque os poetas só escrevem verdades 
tacteando certas carnes. 
Lembro-me de ti, sorrindo naquele acordeão 
que inventava os passos 
do caminho para a cama. 
A luz curiosa desenhava poemas 
na tua pele e o teu arfar molhava 
os beijos que nos deitavam. 
Cansados, rezamos a oração 
dos amantes ausentes para o acordar 
sem memória e um até logo 
que sempre partiu antes de nós.
Até que o sonho lave o meu corpo, 
esconderei este sentimento para a manhã feliz.

Let it roll, baby, roll! 
Let it roll, all night long!




Melides,2017,jul_aNTÓNIODEmIRANDA 


AO DOMINGO NO CORETO

 

(já não falamos sobre isso)

Juntamo-nos ao domingo no coreto 

dos auspícios malandros, 

E, 

Assim, 

Ainda conseguimos trocar mentiras



,2022Mai_aNTÓNIODEmIRANDA
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terça-feira, 4 de novembro de 2025

É ESTE O TEMPO

 


É este o tempo que já não nos espera, envolto em lençóis de madre pérola, ostentando o colar da desavença. É este o tempo do amanhecer ardiloso, do roupão enevoado que pergunta o que foi feito de nós. E nós caídos, tentando apanhar a flor que nunca tivemos nas mãos. Quando a música acaba, neste chinquilho que nunca em nós confiou, vem-nos á memória qualquer coisa parecida com uma vela imitando a voz de deus. Continuámos sós, esquecidos na salmoura dos agradecimentos nefastos e louvámos nas mensagens sem custo, o destinatário desconhecido. Não consigo gostar deste pensar que me atropela e tento cortar a angústia em pedaços adequados ao fondue de toda esta tristeza. 
Não penso em mim nesta forma de pecado e ergo as mãos para a oração errada que junta as mentiras habituais. É este o tempo da vã glória enleada no chicote do resumo sangrento. Dos dardos cravados na maledicência, bocados à deriva buscando um anúncio qualquer, só para alcançar o fim prometido sem saída de emergência. Alguém cuspiu promessas que não cumpriu e os dados mal lançados só deram um poker batoteiro. Temos nas mãos um título de transporte sem validação possível e uma louca corrida que nunca nos deixam vencer. 
Nada é sagrado nesta conspurcação de heterónimos aleijados e estamos sujos pelos medos de uma paciência sobrelotada. 
Final da concessão.
Riscamos todos os calendários.
Queimamos todas as folhas no “Fogo-de-Santelmo” 
e Hieronymus Bosch gentilmente pintou as nossas radiografias.



2017,jun_aNTÓNIODEmIRANDA

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OLÍVIA

 


O bom pastor reza a deus 
um pranto de chuva 
para que no prado cresça a erva 
que alimenta o rebanho. 
Mesmo com os dedos lambuzados, 
depois de ter comido a perna da olívia, 
a sua ovelha de eleição, 
nunca se esquece de agradecer 
o tempero da refeição.

Era um dia especial.
A Olívia já não leva a mal.

Não era lá grande concubina.
Fugidia.
Matreira.
Esquisita.
Malina.




2018Mar_aNTÓNIODEmIRANDA
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FUTEBOL

 


Demonstrámos inequivocamente 
a nossa superioridade.

O adversário 
esteve à altura 
da nossa derrota.



2018Ago_aNTÓNIODEmIRANDA

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GOSTARIA DE NÃO TER FEITO MUITAS COISAS

 


Matar moscas demasiado confiantes na minha 
falta de destreza.

Aniquilar baratas expectantes da minha 
benevolência.

Molestar sardaniscas só porque não condiziam 
com a minha cor clubista.

Desconfiar algumas vezes da minha 
honorabilidade.

Apertar com brandura certas 
amígdalas.

Não ter dado ainda maior desprezo 
aos hipócritas do costume.  

Acreditado, pelo menos uma só vez, 
no sucesso “pós” – traumático.

Não me lembrar da página onde rasguei 
os planos para o futuro.






2018Set_aNTÓNIODEmIRANDA
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É PROÍBIDO ENTRAR

 


Fecha a porta. 
Já estão cá todos. 
Mesmo aqueles que não sabem que faltaram. 
As flores esperam o toque, 
enquanto brincam com palavras cruzadas. 
Cá fora, na pedra dos sonhos curvados, 
juntam-se numa amena cavaqueira, 
versos amarelecidos por tão longa espera. 
Um Bandoneon abandonado,
 aguarda na milonga mãos que o afaguem. 
Cá fora é um lugar que não merece ser respeitado. 
E a velha canção vai espalhando teclas, 
que já não são flores, num caminho já sem sentido.
Sangramos a mesma cor do triste tango.
Cá fora,
risquei a voz que constantemente repetia:
é proibido entrar.






2018Jun_aNTÓNIODEmIRANDA
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LAR DOCE LAR

 


Lar doce lar

que tanto me empobreces

no pagar



2018Mar_aNTÓNIODEmIRANDA
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DUBONET ON ICE (It could be the paradise)

 


Pintei o vestido na tua pele
numa câmara lenta vestida de púrpura.
        E na canção riscada
do disco tão tocado
                sorrimos lado a lado
molhando a volúpia  
            com a nossa saliva.
Amávamos no silêncio cúmplice
        que enlouquecia os lençóis.
O diferente era uma luz que nos cobria
e nunca se importou
com as malícia dos beijos
                que cansavam o nosso 
adormecer.


2017nov_aNTÓNIODEmIRANDA
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INTIFADA - POEMAS PARA UMA PÁTRIA OCUPADA (Anos 80)