Jarmusch estudou cinema na Universidade de Nova York, mas abandonou os estudos quando lhe surgiu a oportunidade de fazer seu primeiro filme, “Permanent Vacation”. Embora “Permanent Vacation” tenha chamado atenção, foi com “Estranhos no Paraíso” que ele realmente mostrou a que veio, conquistando elogios da crítica e do público.
Primeiro filme de Jarmusch no estilo preto e branco, “Estranhos no Paraíso” é constituído por sequências filmadas em um único plano, separadas umas das outras por uma tela preta. Planos-sequência sem malabarismos ou virtuosismos técnicos, apenas a câmera fixa observando seus personagens em diálogos curtos e esvaziados e representando ações cotidianas, como assistir à televisão, dirigir ou conversar em um corredor do prédio. O filme conta a história de um jovem apático que recebe a visita de sua prima húngara, e resolvem, junto com um amigo, visitar a tia em Cleveland. Filme radicalmente contra a forma tradicional, com sequências dando ênfase principalmente a situações cotidianas, “Estranhos no Paraíso” rejeita qualquer aprofundamento ou discurso, tornando-se desconfortável e revelador em seu silêncio profundamente humano, onde impressões de afeto e desespero não são permitidas pela ação ou pelos diálogos, mas pela ausência de tudo isso. O minimalismo de Jarmusch, aqui, iniciou uma revolução silenciosa, fazendo desta uma obra influente para as gerações posteriores. Símbolo do cinema indie, “Estranhos no Paraíso” conquista pelo anacronismo legítimo, sem concessões ou didatismo.
“Down by Law” talvez seja o filme mais famoso do diretor. A aura cult do filme está implícita no longa desde a escalação do elenco, que tem: John Lurie (como um cafetão), o músico Tom Waits (como um DJ desempregado) e Roberto Benigni (como um excêntrico e otimista imigrante italiano). A história do filme gira em torno de três personagens de tipos bem diferentes que acabam se encontrando na prisão. Nesse ambiente inóspito, eles criam um vínculo de amizade (ou, pelo menos, aprendem a se tolerar) e formam uma parceria para que possam fugir dali. Neste – que é um filme de crime feito como qualquer outra coisa menos um filme de crime, os personagens marginais e “abaixo da lei”, como afirma o título, são mais importantes que seus delitos. Temos, assim, alguns temas recorrentes do cineasta Jim Jarmusch: um imigrante (Benigni), personagens desajustados, as coincidências que mudam drasticamente o destino dos personagens. O filme é elegantemente produzido em preto e branco, divertido, com um texto bem amarrado e criativo.
Inaugurando um formato de narração que consagraria o diretor dentro do circuito alternativo, “Trem Mistério” é o primeiro filme de Jarmusch a ser composto em “vinhetas” – três pequenas histórias que, juntas, com uma conexão causal mínima entre si, formam uma história maior. O espaço é o mesmo – um hotel onde, em todos os segmentos, os personagens são recebidos pelo saudoso gênio rústico Screamin’ Jay Hawkins, mas não há nenhuma conexão ou propósito maior. As histórias de uma turista que perde todo o dinheiro após um golpe e é ajudada por uma desconhecida, de um casal de japoneses obsessivos por Elvis que querem conhecer lugares da sua história em Memphis, e um trio de criminosos pé-de-chinelo, se encontram devido a apenas um evento em comum: o disparo dado pelo trio e ouvido pelos outros. Ocorrendo simultaneamente, formam uma espécie de tríptico jarmuschiano sobre a vida noturna. Sem implicações sociais ou romantismos individuais, Jarmusch entra adentra a natureza dos Estados Unidos, com forasteiros conhecendo os resquícios do império do cinema e do rock ‘n’ roll, e os últimos sobreviventes deste sonho catando migalhas e tentando sobreviver. Com a habitual tristeza contemplativa, somada a gags cômicas e diálogos nonsense que aprofundam ainda mais o lado “patético” de seus personagens, “Trem Mistério” aprofunda a recusa ao cinema tradicional e amplifica ainda mais o interesse pela recriação do cotidiano urbano “fora da grande roda”.
“Uma Noite Sobre a Terra” trata de variações sobre um mesmo tema: pegar um táxi e conversar com o motorista, construir mini-narrativas através das relações efêmeras e do papo furado de gente que não consegue ficar quieta consigo mesma e tenta se comunicar – costume este espalhado pelas duas mais famosas capitais dos EUA, Los Angeles e Nova York, e três capitais européias, Paris, Roma e Helsinki. É surpreendente como o estilo de Jarmusch é mutante mesmo com o formalismo fiel, referenciando o cinema de cada lugar – como é possível observar na comédia multi-cultural de Nova York, no taxista de Roma de Roberto Benigni e seu exagero obsceno a la Monicelli, ou no drama realista distante típico dos países nórdicos em Helsinki.
“Dead Man” – não só pelo título, mas até a medula – é quase como o espelho de um western tradicional: é preto e branco após o technicolor; o caubói da terra é substituído pelo forasteiro; ao invés dos típicos violões, a guitarra distorcida de Neil Young. O ritmo não é aventureiro, mas letárgico. Enfim, o resultado é um filme com Johnny Depp na sua melhor fase, com um clima de comédia de erros onde as coincidências vão construindo e guiando os personagens. Explora um personagem preso entre duas culturas (o índio que gosta de ser chamado de “Ninguém” – numa clara brincadeira sobre o choque cultural tão evidente no cinema de Jarmusch), com Iggy Pop como vilão e muito mais. É um grande filme, sendo incomum, anti-climático e muito bem realizado.
Após Johnny Depp, Jarmusch escolheu outro ator célebre por procurar personagens diferenciados, Forrest Whitaker, e criou “Ghost Dog” – um assassino de aluguel afrodescendente que segue os ensinamentos samurai e que trabalha para Louie, um mafioso italiano, como uma dívida de gratidão por ter salvo sua vida. O conflito principal, neste que é o filme mais narrativo de Jarmusch até então, é o embate do severo código bushido, “o caminho do guerreiro”, para que o samurai viva e sirva com honra, contra o mundo mafioso, disforme, amoral e interesseiro. Cruzando referências das mais diversas – o roteiro faz menção tanto ao clássico conto “Rashomon”, na construção do passado de “Ghost Dog”, quanto tem a trilha sonora produzida pelo mestre do hip hop RZA, do Wu-Tang Clan, sempre criando, através de suas batidas, samples e vinhetas sonoras com um clima urbano vivo, instável e tenso.
“Sobre Café e Cigarros” é o filme-síntese de um projeto estético. Nele, é refinado, mais do que nunca, o tal sincretismo do papo furado – os temas e situações universais que nos unem e não damos importância. As histórias, invariavelmente sobre pessoas fumando e tomando café, conversando amenidades e se relacionando de forma superficial, sempre caem em desconforto e constrangimento sob qualquer tentativa de aproximação. Em um conjunto de 11 curtas, o diretor e roteirista coloca essa vasta gama de personagens para filosofar à mesa sobre os mais variados temas – da suposta morte do irmão gêmeo de Elvis Presley a picolés de cafeína. São papos entre irmãos, primos, amigos, colegas de profissão, clientes e garçons. Neste misto, surgem alguns personagens interessantes, como as primas Shelly e Catie, ambas vividas pela sagaz Cate Blanchett. Simples e vulgar como todo o cinema contemporâneo, “Sobre Café e Cigarros” é um improviso, um rascunho, algo que só se completa se alguém o assistir e inserir o afeto ali. Não há limites ou horizontes, apenas vislumbres.
“Flores Partidas” apresenta o rosto esvaziado de Bill Murray, a atuação contida, a recusa a qualquer construção de emoção pelo método. A história sobre um bon-vivant aposentado procurando o filho de dezenove anos – que nunca conheceu, visitando cinco ex-namoradas, cria um filme episódico. Onde deveria haver a progressão dramática tradicional, há apenas o esforço, a tentativa, a possibilidade. Há um mundo maior por trás de cada obra de Jarmusch, que recusa a encerrar a obra em si. O mistério que jamais se responde – que é o interessante: o reencontro do protagonista com suas antigas namoradas não é construtivo; as diferentes reações às suas batidas à porta refletem o singular filme sobre envelhecimento de Jarmusch, onde se trabalha com as ilusões perdidas, rancor internalizado e relações vazias.
Coadjuvante, como o sorverteiro haitiano amigo de “Ghost Dog” no filme homônimo, o marfinês Isaach de Bankolé volta como o assassino de aluguel protagonista de “Os Limites do Controle”, o mais silencioso e opressivo dos filmes de Jarmusch. Enfileirando figuras típicas do cinema policial, nenhum deles é individualizado através do drama. Os personagens não têm nome nem personalidades definidas, sendo identificados apenas por uma característica marcante (“o mexicano”, “a loira”, “guitarra”), e interagem com o protagonista de forma ritualística: café, pergunta, papo furado e informações criptografadas. No restante do tempo, a rotina de hotéis e trens. A história trata de um homem solitário (Isaach De Bankolé) que vai à Espanha, com o propósito de cumprir ordens sem muito questionar. Sua eficiência é o que interessa, e ele está interessado em fazer seu trabalho da forma mais discreta possível. Entre encontros com intermediários, com quem troca caixas de fósforos, conversas sobre assuntos banais. Embora a imagem de Isaach De Bankolé inspire certo respeito, medo e periculosidade, ele nunca usa de violência. Ele pouco fala, embora sempre seja questionado sobre seus interesses por aqueles que encontra: artes, ciência, música, sexo? Aquele homem não se interessa por nada e é como se estivesse deliberadamente perdido dentro de uma lógica que não lhe pertence.
Mais um anti-gênero de Jarmusch, dessa vez flertando com o cinema fantástico. Por mais que isso possa parecer atípico, o novo filme de Jarmusch trata sobre vampiros. E se a vida finita já era tediosa, imagine se você estiver vivo há séculos, sem data para morrer. É o caso de Adão e Eva, um casal de vampiros que se relacionam há séculos, alheios à humanidade, mas verdadeiras esponjas de toda a arte produzida nesses séculos. A rotina vampiresca, às voltas com personagens periféricos inconvenientes, violência pontual e contemplação da vida urbana noturna de maneira cíclica, assim como denota o início com zenitais circulares, constrói um panorama da vida ocidental – obsessão frequente do diretor ao demonstrar as relações de indivíduos com sua cultura, costumes e crenças. Os vampiros bíblicos de Jarmusch são assim como os humanos que emulam e por eles são emulados: tecnológicos e místicos, “na moda” e nostálgicos, brutais e sofisticados, filmados não em conflito entre trevas e luz, como as unidades cromáticas do casal protagonista parece dar a entender, mas com a naturalidade da instância do presente.